ENTREVISTA

Xico Sá, um proustiano do Cariri

O autor cearense lança nesta quinta (8/11) no Recife o seu primeiro romance, que resgata o Cariri dos anos 1970

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 08/11/2012 às 6:40
Foto: Igo Bione/JC Imagem
O autor cearense lança nesta quinta (8/11) no Recife o seu primeiro romance, que resgata o Cariri dos anos 1970 - FOTO: Foto: Igo Bione/JC Imagem
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Para escrever seu primeiro romance, o cearense Xico Sá precisou contradizer um dito famoso: o de que é impossível se banhar duas vezes no mesmo rio. Em Big Jato (Cia das Letras, 184 páginas, R$ 33), com lançamento nesta quinta (8/11), às 19h, na Livraria Cultura do Paço da Alfândega, o cronista voltou aos açudes da sua juventude no Cariri para criar a história picaresca de uma família que tira o sustento das fossas. Xico fala de suas reminiscências e confessa sua paixão pelo Recife: “É uma fêmea que dá trabalho, mas é razão de uma existência”.

JC – Primeiro queria que você contasse como Big Jato surgiu. Era uma vontade antiga a de fazer um romance? Como foi a gestação da obra?
XICO SÁ –
Era uma barulheira no juízo que precisava ser resolvida. O livro surgiu das zoadas da infância no Cariri: o resmungo dos velhos, a harmônica convivência dos Beatles com Luiz Gonzaga e o motor do Fenemê. Meu pai teve um desses caminhões e sempre eu ouvia falar que o barulho dele, na subida de uma ladeira, era equivalente ao gemido de quem é vítima da terceira venérea. É um livro zoadento, de quem guardava esses besouros todos e carecia libertá-los.

JC – A mistura entre memória e ficção é intencional na obra, não? O que na história do livro é realmente parte da sua vivência?
XICO SÁ –
Como diz Kurt Vonnegut, uma das grandes influências do Big Jato, “tudo isso aconteceu, mais ou menos”. Creio que fiz uma autobiografia não minha, mas de todo mundo que foi embora, que deixou sua pequena cidade ou vila e partiu. É passado, aliás, durante a grande onda de migração dos anos 1970, com o Brasil deixando de ser rural para ser mais urbano. O Cariri que surge no livro é totalmente real, com os seus sábios, como o Príncipe Ribamar da Beira-Fresca. O resto é uma danação fictícia, uma memória delirante, como se tivesse sido adulterada por um LSD ou pela maconha da beira do São Francisco.

JC – Falar da sua juventude funcionou como um acerto com o passado?
XICO SÁ –
Sim. Era preciso. A gente vai virando outro tipo de gente e às vezes esquece de onde veio. É necessário mostrar nossa origem. Tentei fazer literatura disso, mas me peguei chorando muito em vários momentos da escrita. Os indianos dizem que não se banha mais de uma vez no mesmo rio, mas eu me banhei sim no mesmo açude. Não se banha duas vezes com o mesmo corpo, mas nas mesmas águas sim. Eita, pareceu religioso, místico, né? Talvez seja.

JC - Saber lidar com os excrementos é o que garante da dignidade da família do protagonista de Big Jato. Isso pode ser tomado como uma metáfora mais ampla, tanto de como lidar com a vida como do seu fazer literário?
XICO SÁ -
Virou metáfora, mas não era a intenção. São as boas falhas da narrativa. Você dá a largada para ser direto e a simbologia nos atropela na curva. O velho do livro quer limpar a sujeita do mundo e o menino acaba vendo nos excrementos a igualdade entre os homens – é um susto quando ele sabe que o ditador militar, Lennon, Roberto Carlos e o papa cagam.

JC – Talvez a trama central do livro seja a disputa entre o lado apolíneo e o dionisíaco dos personagens do velho, o pai do protagonista, e do tio, o “veado, maconheiro e vagabundo”. É possível conciliar os dois aspectos?
XICO SÁ –
É o grande conflito do menino, que vai crescendo entre esses dois universos, ora pende para um, ora para outro. No meu drama real, prevaleceu o apolíneo até a chegada ao Recife. A partir daí, a poesia. Além da cidade ter quatro poetas por cada metro quadrado, tive a sorte de beber e aprender com Alberto da Cunha Melo e Jaci Bezerra, que me ajudaram não só como mentores, mas também materialmente.

JC – Há na narrativa uma construção da realidade de costumes, expressões e valores do Cariri. Como era ter esse instinto de poeta em meio a rudeza da vivência do sertão?
XICO SÁ –
Acho que essa voz veio ou voltou agora. No mergulho proustiano, ajudado não por madeleines, mas por carne de bode e doce de buriti, o instinto poético bateu inclusive para contrapor à vida gracilianíssima, de tão seca, enxuta.

JC – No livro, o Recife é o ponto de fuga do personagem. Era essa visão idealizada que o Cariri tinham da capital pernambucana?
XICO SÁ –
A ligação afetiva da minha turma do Cariri era com o Recife. Era a nossa Paris literária. Melhor que Paris, aliás, como diz o título de um livro do Mário Hélio. As minhas tardes na frente da Livro 7 – até trabalhei lá por um tempo – e as cervejas na Praça do Sebo foram meu curso completo de história universal da infâmia e da literatura. Foi na Praça do Sebo, aliás, sob o olhar dos sebistas Pedro Américo e Melquizedeque, que vi pela primeira vez o que era um artista de fato: era Paulo Bruscky, esse gênio, pintando de vermelho o mundo.

JC – Diante disso, existe uma simbologia em fazer o primeiro lançamento do livro aqui no Recife?
XICO SÁ –
Vale aquele velho verso, creio que do alagoano Lêdo Ivo: amar mulheres muitas, amar cidade só uma: Recife. É uma fêmea que dá trabalho, mas é razão de uma existência.

JC - O livro também vai virar filme pelas mãos de Claudio Assis. Como estão as conversas com ele? O que você crê que vai precisar alterar na estrutura do romance?
XICO SÁ -
Já temos dois tratamentos do roteiro. Antes mesmo de acabar o livro, o filme já começou a ser feito no papel, o que acabou influenciando o livro. As conversas com Claudio e Hilton Lacerda, que vai fazer o arremate final no roteiro, me ajudaram inclusive a entender melhor a estranheza do que eu estava escrevendo. A adaptação vai mudar muito do enredo, mas não mexe uma palha no universo e nem na loucura picaresca do livro.

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