Recordo-me de Günter Grass em três tempos. O primeiro foi quando tomei contato com sua obra. Não lendo um livro seu. Mas vendo um filme. Sim, O tambor. Tocante não é só a história do menino e sua grande metáfora de recursar-se a crescer, mas a sensual descrição do cheiro da pele de uma personagem feminina.
O segundo tempo foi na polêmica do poema que ele publicou há três anos. Não falta ainda hoje quem associe o tal texto – um libelo em que ataca Israel – às mais remotas e profundas feridas de sua vinculação à SS. O assunto, porém, é muito mais complexo, e não cabe nestas linhas. Escritores e política perfazem uma combinação das mais problemáticas. No caso do alemão, essa ligação nunca se desfez.
O terceiro tempo: no ano passado, a convite da Porto Editora, assisti ao lançamento mundial do livro póstumo de José Saramago: Alabardas, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. E lá estavam os desenhos de Günter Grass ilustrando a obra. Política também, até o cerne.
Um dos melhores leitores de Grass é J. M. Coetzee, também Nobel de Literatura. Ele diz:
“Günter Grass nunca foi um grande estilista em prosa, nem um pioneiro da forma ficcional. Sua força está alhures: na perspicácia da sua observação da sociedade alemã em todos os níveis, em sua capacidade de sondar as correntezas mais profundas da psique nacional e em sua firmeza ética.”
A referência à ética feita por Coetzee daria margem também a uma longa reflexão a respeito não somente da literatura e a política, mas da disposição de muitos escritores para extrapolar a linguagem e atuar ou, pelo menos, opinar sobre a realidade e influenciar os rumos do tempo. O uruguaio Eduardo Galeano seria um dos primeiros dos autores latino-americanos de que alguém poderia recordar-se ao cuidar de um texto assim.
Graças à obra-manifesto As veias abertas da América Latina o seu nome alcançou a transcendência tão desejada pela maioria dos autores. E quando começou o boom dos festivais de literatura, sua participação passou a ser desejada por todos eles. Logo ao assumir a coordenação da programação do congresso da Fliporto, em 2009, convidei-o a fazer a abertura, em Porto de Galinhas.
Não foi uma tarefa das mais simples. Galeano vinha de superar problemas de saúde. E o trabalho de convencê-lo foi possível graças aos laços afetivos que ele mantinha com o escritor Cláudio Aguiar, ou “Claudinho”, como preferia tratar o autor de Caldeirão.
Havia também uma ligação viva com o Brasil e Pernambuco (as ilustrações feitas pelo gravador J. Borges para As palavras andantes são uma parte disso). Em julho de 2009 consegui a confirmação de Galeano. Cachê? Zero. Ele não fez uma conferência no sentido tradicional, mas uma leitura de relatos a partir do livro novo lançado naquela ocasião: Espelhos – uma história quase universal, seguida de uma conversa com o público. O título: “Os Espelhos da memória: um bate-papo com Eduardo Galeano”. Foi assim uma das mais vivas e aplaudidas participações de um autor na Fliporto.
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Encontro aquele especial sob muitos aspectos. Lá estavam na mesma praia e na mesma foto Eduardo Galeano com o seu tradutor Eric Nepomuceno – também presente na Fliporto de 2009 – e o seu amigo Antonio Skármeta. Uma tríade da melhor narrativa não só das veias abertas da América Latina, mas das veias que ligam diretamente a memória ao coração. Ao recordar de Galeano, vale a pena referir como ele recordava: com o coração. Assim como põe a explicação, em epígrafe em O livro dos abraços: “Recordar: Do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração".
Na dedicatória quando autografou esse livro para mim, ele escreveu que O Livro dos Abraços abraça a quem dedica. Tudo em harmonia com o velho Whitman, da Outra América. Era como se dissesse, vivendo-o, num esplendor quase profético para o momento da morte de agora:
“Camerado! This is no book;
Who touches this, touches a man;
(Is it night? Are we here alone?)
It is I you hold, and who holds you;
I spring from the pages into your arms—decease calls me forth.”