Tenho muito medo de todo aquele que se acorda um dia, olha o mundo e as suas mazelas, e proclama a solução de todas as suas moléstias. “Iluminados” como esses são responsáveis por criar as “grandes utopias”: sejam elas religiosas ou político-econômicas. No caso, sociedades econômica e politicamente perfeitas, com homens e mulheres fisicamente perfeitos, moralmente íntegros, altruístas e sexualmente quase castos. O problema desses grandes teóricos que pensam essa espécie de Paraíso revivido, é que eles esquecem de combinar essa tanta “perfeição” com as pessoas comuns, os que nunca aspiraram, nem aspiram, à “santidade”. Eles, quando escrevem os seus textos, têm em mente o Adão do Paraíso, mas, na prática, se deparam com o Adão depois da Queda. O resultado é que todas essas utopias quando se tornam políticas de Estado (Comunismo, Fascismo, Nazismo e Estados Teocráticos) encerram as práticas mais monstruosas que um ser humano foi e é capaz de imaginar. As vidas ceifadas por essas “grandes utopias” estão, como sabemos, na casa de milhões. Afinal, pensam os utopistas: se o homem não consegue se adequar ao mundo perfeito das ideias, o erro não reside nos seus pressupostos utópicos, mas no homem em si.
No entanto, há uma sutil diferença entre as obras que encerram as utopias religiosas, como a Bíblia e o Alcorão, e as políticas, como Minha Luta, de Adolf Hitler. As primeiras podem ser lidas a partir de duas chaves. Em uma, encontramos o Deus da “pequena utopia”, o do amar ao próximo como a si mesmo. Aqui, a Criação se plasma não pelo monocromatismo, mas por uma diversidade infinita de cores: aprendemos que amar o próximo é um contínuo aprendizado, uma pratica diária de resignação. Em outra chave, está o Deus da “grande utopia”. Um Ser que acredita que a Queda pode ser revertida por meio de sentenças terríveis. Afinal, a sua criação é perfeita, a árvore do Conhecimento foi que a desvirtuou. As Guerras Santas, as Inquisições, os fundamentalismos evangélicos e islâmicos são filhos dessa “grande utopia”.
Minha Luta é uma obra que só possui uma única chave: o do maior libelo de ódio contra a humanidade e tudo que possa defini-la enquanto tal: a sua diversidade étnica, sexual, religiosa, política, cultural. Em suas páginas, a humanidade é dividida entre os que são moralmente e biologicamente “superiores” e os que são, por subtração, quase uma sombra dessa humanidade: os animalizados. Tudo isso calçadas em supostas verdades científicas, em documentos forjados, e na “virtude” de encerrar todos os fantasmas, demônios, mentiras e mitos que a humanidade criou e cultivou ao longo de milênios sobre o outro, o diverso; não apenas encerrá-los, mas fazê-los tomar corpo e alma ao se tornarem política de Estado. O resultado, como sabemos, foi a subtração do “livre arbítrio”, o extermínio puro e simples de milhões de pessoas (o que Tomás de Aquino chamaria de a pratica do “mal absoluto”), uma Guerra de dimensão mundial, e uma semente sob a terra que insiste em não morrer.
Regar a semente ou não? Se sim, a quem ela vai alimentar com os seus frutos? Seria ele o fruto que falta no banquete do reacionarismo político e religioso que domina hoje a paisagem mundial? Mesmo com todos os riscos, mesmo sabendo da profunda indigestão, intoxicação e morte que esse fruto pode causar em quem dele se alimente, sou a favor que ele seja exposto nas prateleiras das livrarias. No entanto, assim como determinados alimentos trazem o aviso de que a sua ingestão indiscriminada pode levar à morte, Minha Luta também precisa trazer um prefácio crítico que o situe no tempo e no espaço, eruditas notas de rodapé que esclareçam ao leitor todas as supostas verdades científicas encerradas por uma das mentes (Hitler) e um dos regimes mais doentios que a humanidade já produziu: o Nazismo.