Tentar resumir Jomard Muniz de Britto com algum aposto preguiçoso talvez seja uma das grandes crueldades que se pode fazer com alguém tão múltiplo, ágil, contraditório e, principalmente, vivo. Neste sábado (8/4), quando completa 80 anos, o artista ganha um retrato agudo e complexo através da biografia – ou melhor, da não-biografia – feita por Fabiana Moraes e Aristides Oliveira, Jomard Muniz de Britto – Professor em Transe (Cepe Editora, R$ 80, 242 páginas). O volume é lançado no Cinema do Museu, em Casa Forte, antecedido por uma sessão, às 16h, do documentário JMB, o Famigerado, de Luci Alcântara, e do filme O Palhaço Degolado.
A inimitável mensagem da secretária eletrônica de Jomard convida todos, dos amigos mais próximos e até os mais discordantes, a participarem da “ostentação, aliás, oitentação” do artista. Avesso a definições, lembranças e narrativas lineares, ele é uma daquelas figuras fascinantes, mas difíceis de se começar a descrever.
“Era quase como falar sobre alguém que não estava lá”, conta Fabiana sobre o ofício de biografar e não biografar, no melhor estilo do manifesto tropicalista, o artista. “E depois percebi que era isso mesmo: eu estava fazendo uma ‘biografia’ sobre uma pessoa que escapava o tempo todo. Jomard é isso, essa criatura em movimento, que diz: ‘Isso não sou eu, isso não foi assim’. Ele se recusa a ficar, como a maioria das pessoas, preso a uma série de características que o tornariam mais palatável. Ele se recusa a ser nostálgico, é muito nobre para ficar preso a algo que já passou – o que está acontecendo também é uma obra em progresso.”
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A trajetória de Fabiana, ex-repórter especial do JC, é vinculada aos fatos e a precisão. Jomard, por sua vez, não gosta de falar de datas, cronologias. “Quando eu levava entrevistas estruturadas, eu sempre voltada sem respostas”, diz a autora. Por exemplo, se uma série de perguntadas são enviadas a Jomard, ele pode simplesmente pedir para um amigo, Roberto Motta, responder por ele – dizia que Roberto o conhece mais do que ele mesmo.
Em nenhum momento, no entanto, Jomard se negou a ser biografado. “Para mim, a essa altura, é algo quase indiferente. É um motivo de satisfação ter Fabiana, uma autora premiada, escrevendo sobre mim. Mas eu não sou muito ligado a essa coisa de memórias, do memorialismo. Ainda não li o livro. Depois, num atentado poético, vou dizer o que achei”, conta o artista.
NÃO-BIOGRAFIA
É por conta desse Jomard que sempre escapa aos rótulos que Fabiana prefere chamar o livro de uma não-biografia. “No sentido de abarcar essas nuances dele, o livro é muito verdadeiro, mais do que seria se ficasse detido em datas”, ressalta. O volume, recheado de fotografias, busca dar conta da origem familiar do artista, da sua formação, da sua atuação como educador – posteriormente vinculado a Paulo Freire, da sua escrita, do seu pensamento, dos seus debates públicos, do seu teatro, da perseguição política de que foi alvo, do seu cinema, enfim, das muitas geografias que Jomard habitou nesses 80 anos. “Acho que me pensar como ambivalente seria bem pedante. O que é marcante na minha trajetória é a minha atividade educativa. Acredito que todo o meu trabalho é um diálogo”, opina o professor em transe. “É uma herança do dialogismo paulofreiriano.”
O livro é muito rico em mostrar como Jomard participou – e como ator importante – dos grandes debates culturais e estéticos do Brasil. Regionalismo, Paulo Freire, Movimento Armorial, Tropicalismo, Cinema Novo, bossa nova, tudo foi pensado com a agilidade, profundidade e abertura do artista ao longo dos anos. “Acho que essa é a parte do livro de que mais gosto”, confessa a autora.
Sobre a família, por exemplo, ele falava pouco. Eram amigos que davam informações a Fabiana e Aristides, que depois traziam o assunto à tona nas conversas com Jomard. “Muitas pessoas, ao saber da biografia, vinham falar comigo esperando que eu abordasse intensamente a vida sexual de Jomard. Isso passou a me incomodar muito, porque ele demarca bem a vida pessoa dele. E o sexo e a sexualidade são muito presentes na obra dele. Também não gosto dessa ideia de que uma biografia é para expor a intimidade de alguém, não sei se isso é interessante. Não forcei o assunto da sexualidade, mas comento esse incômodo dele, por exemplo”, diz Fabiana.
Muitas vezes, o artista se enfadava com a tentativa de ser “capturado” em uma biografia. No entanto, se ficassem sem notícias de Fabiana por suas semanas, ele ficava com raiva. A coerência de Jomard, que acompanha a sua trajetória provocante e incisiva, é a de se permitir, como poucos fazem, contradições e dúvidas.
Por exemplo, sobre a perseguição sofrida na ditadura. Jomard foi aposentado compulsoriamente da UFPE p depois que sua colega de trabalho, Maria do Carmo Miranda, publicou um anúncio no Diário de Pernambuco afirmando que Jomard não era ligado a ela e expondo a proximidade dele a Paulo Freire. O artista foi preso e depois perseguido por isso (com ajuda de Gilberto Freyre), mas não gosta de falar muito do assunto e nem parece guardar um rancor forte. “Jomard é o tempo todo elegante com as pessoas que foram terríveis com ele. Ainda fala de Maria do Carmo Miranda como uma parte de suas referências”, conta Fabiana. “Gilberto Freyre tocou o terror com pessoas como Jomard e Luiz Costa Lima.” A não-biografia ainda aborda, naturalmente, o episódio dos dois socos de Ariano Suassuna em Celso Marconi, amigo de Jomard, que também era um dos alvos do escritor.
Além disso, mesmo tendo sido reiteradamente perseguido pela ditadura, Jomard não fala do assunto como outras vítimas da época. “Acho que ele não aceita isso como um leitmotiv. Não que veja um problema com isso, mas talvez seja redutor para ele”, aponta a biógrafa.