Talvez não reste algo de muito novo a se dizer sobre o escritor tcheco Franz Kakfa. Mais do que um mestre do passado, ele é uma espécie de contemporâneo incessante, um moderno que não deixa de falar do mal-estar do presente. Sua prosa, especialmente em obras-primas como A Metamorfose e O Processo, é clássica e urgente, um “evangelho da perda”, como define o escritor e tradutor Marcelo Backes.
Foi ele que traduziu e realizou a seleção de 36 textos para o volume Blumfeld, um Solteirão de Mais Idade e Outras Histórias, volume lançado agora pela Civilização Brasileira. O livro traz a versão de Backes para contos célebres de Kafka, como Um Artista da Fome, e conta com uma preciosidade, que encerra a obra: O Guarda da Cripta, o único texto dramático do autor, inédito no Brasil.
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Logo no primeiro conto, que dá nome ao volume, vemos um personagem de Kafka estranho e familiar, Blumfeld. É um homem que vive só, incomodado com a própria solidão – e apegado a ela também. Um dia, ao chegar de casa, nota que foi seguindo por duas bolas, que quicam alternadamente no chão sem perderem força e que o seguem para onde ele vai. De repente, o leitor está no universo kafkiano, onde o absurdo é só mais um elemento do cotidiano e exerce seu poder diante das pessoas.
Blumfeld – como os protagonistas de quase todos os contos do volume – é o herói das narrativas de Kafka por definição: é solitário, está oprimido diante do mundo, tenta seguir mesmo diante do que qualquer um pararia. Em dado momento da história, o personagem pensa: “Também o que é incomum precisa ter limites”. Esse é um dos motores da ficção da Kafka, a esperança, ingênua e vã, de que o peso da vida em algum momento pode voltar a ser razoável, mesmo que a pessoa tenha se tornado um inseto, seja processada sem motivo, precisa conviver com duas bolas que lhe seguem para onde vá.
O personagem do primeiro conto é exemplar em vários sentidos. Blumfeld reclama dos companheiros mais jovens de trabalho porque entende que é preciso chegar 30 minutos antes do horário por um “sentimento de decência”. Outras narrativas do livro são breves, quase fragmentos. Em O Casal, um homem vai visitar um cliente e se vê imerso na intimidade da casa dele. O texto termina com mais um lema kafkiano: “é necessário levar o fardo sempre adiante”.
O volume é uma lembrança de como Kafka produziu uma voz literária que persiste em seus vários textos, ainda que sua prosa raramente tenha afetações. No posfácio da obra, Marcelo Backes ressalta que o estilo do escritor tcheco é “marcante, embora uma de suas maiores características seja a impessoalidade”. “Ele reduz a riqueza da língua alemã a trezentas palavras, e mesmo assim é um dos maiores estilistas da prosa alemã”, afirma.
ARTISTA DA FOME
No livro, há ainda dois dos mais famosos textos de Kafka, como Josefine, a Cantora e Um Artista de Fome. Esse último é uma pequena obra-prima sobre um homem que passa fome para entreter o público, mas que sente que ninguém entende a beleza do seu sacrifício – “Porque eu preciso passar fome, porque não consigo agir de outro modo”, diz o personagem.
No curto O Nadador, Kafka traz um homem, premiado com a medalha de ouro de natação em uma Olimpíada. O personagem, no entanto, nunca soube nadar. O livro é concluído com o inédito O Guarda da Cripta, um texto dramático sobre um príncipe que recebe o guarda que cuida à noite do túmulos dos seus antepassados. Também o príncipe é um homem podado pelos que o cercam, com cuidados, segredos, conspirações.
No posfácio, Backes traça os diálogos e as influências do autor. É um texto que tece reverências à grandeza de Kafka, o escritor mandou destruir toda a sua obra. Blumfeld, um solteirão... é valioso como um atestado de que ler a prosa kafkiana é sentir a vida em um mundo sem sentido, o peso do poder, da culpa e da punição. Pode-se ter a sensação de que já se falou tudo que era possível sobre Kafka, mas, ainda assim, é preciso continuar a tentar desvendá-lo.