ENTREVISTA

Ronaldo Correia de Brito adentra o Nordeste e o presente em novo livro

'Dora sem Véu' traz a história de uma professora que continua a busca do pai por uma mulher

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 27/05/2018 às 7:40
Luiz Santos/Divulgação
'Dora sem Véu' traz a história de uma professora que continua a busca do pai por uma mulher - FOTO: Luiz Santos/Divulgação
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“É necessária uma eternidade para ouvir e narrar”, diz um trecho de Dora  sem Véu (Alfaguara), novo romance do escritor cearense radicado em Pernambuco Ronaldo Correia de Brito. A frase serve bem para o próprio autor, que toma o ofício de narrar com cuidado na obra, a ser lançada no Recife no dia 11 de junho, no Museu do Estado, às 19h. Nesta entrevista, Ronaldo comenta como transformou a ideia original em um conto e, agora, em um romance, revela como foi criar uma voz feminina e ressalta que Dora sem Véu é um livro escrito na atualidade e para ela.

JORNAL DO COMMERCIO – Ronaldo, a origem de Dora sem Véu é uma novela que virou um conto, e a narrativa, na verdade, se desdobra em várias histórias dentro de uma busca. Como foi o processo de escrita da obra até ela tomar essa forma?
RONALDO CORREIA DE BRITO – Já falei noutra entrevista que enxergaram num conto de Livro dos Homens – Milagre em Juazeiro – o arcabouço de um romance. Na verdade, eu tinha escrito uma novela e condensei-a num conto. Agora fiz o contrário, alarguei o enredo, ampliei as narrativas e dei a forma de romance. Fui marcado por leituras da Bíblia e das Mil e uma Noites, livros em que há muitos narradores e histórias que entram umas pelas outras. Dora sem Véu é assim. Na verdade, eu sempre escrevo assim.

JC – Dora sem Véu traz a história de uma busca por um passado familiar perdido, uma espécie de acerto de contas impossível. Pensou o romance como essa perseguição a um fantasma que não se pode expurgar?
RONALDO – Sim. Todos os personagens, estão acertando contas, o que até faz pensar numa trama policial. Mas não se trata desse gênero, embora tenha um crime a se esclarecer. Pertenço a uma família numerosa, cheia de enredos e intrigas. No trabalho, vivi em enfermarias de hospitais com muitos pacientes e funcionários, envolvimentos e paixões. Percebi em todos os lugares que as pessoas tinham rancores ou outros sentimentos a passar a limpo. Dora é o personagem central do romance, um fantasma – ou ela ainda estaria viva? – cuja desgraça respinga em todos, pede exumação.

JC – É uma história narrada quase que completamente por uma mulher, Francisca. Como decidiu centrar sua narrativa nela? No que mudou a experiência de escrita trazer o ponto de vista feminino?
RONALDO – Sempre escrevi sobre mulheres, talvez porque amei e amo mulheres muito importantes em minha vida. Sempre tomei o partido das mulheres, sofri suas dores e lutei junto com elas. Quando era menino, gostava mais de brincar com as minhas irmãs do que com o meu irmão, me sentia mais próximo delas. Não tomei a decisão de escrever na primeira pessoa feminina, mas desde a primeira fala Francisca se apropriou da narrativa. Se outros personagens começam a narrar, parecem intrusos. Francisca é uma voz feminina e feminista. Confesso que não foi fácil a experiência de assumir esse lugar. As primeiras leitoras do romance já me deram um bom retorno, gostaram da experiência narrativa e isso me deixou feliz.

JC – A obra ainda se desenlaça em diversas narrativas. Você vê Dora sem Véu como um romance composto de pequenos romances, uma história que vira várias?
RONALDO – Falei disso um pouco acima. Quando o professor Anco Márcio apresentou meu livro de contos O Amor das Sombras, ele disse que as narrativas se encaixavam de tal maneira que pareciam um romance. Citou as Mil e uma Noites e anotei a observação com carinho. Em Dora sem Véu há muitas histórias que vão se unindo como os afluentes de um rio. Mas nada está solto nem de graça. Tudo se encaixa, se espirala até um ápice que surpreende.

JC – O livro fala de algumas das cicatrizes ainda abertas do Brasil: a pobreza, o feminicídio, o flagelo da seca no Ceará, a presença dos europeus e brancos na Amazônia. Nesse sentido, acha que trouxe uma dimensão política para sua obra? Sentiu necessidade disso pelo momento que vivemos?
RONALDO – Pertenço à linhagem de escritores que pensam o país onde vivem, criam os filhos e os netos nesse país, lutam por igualdade social e querem outra sociedade. Há 48 anos, desde que entrei no curso de medicina, vivo em emergências e enfermarias de hospitais públicos, semelhantes a praças de guerra. Sou um servidor público, trabalho com pessoas vivendo nas piores condições de miséria. Essa convivência mudou minha vida, meu olhar sobre o Brasil, me obrigou a repensar-me. Foi o aprendizado de uma realidade bem diferente da que vivi no Cariri, um mundo mítico, povoado de personagens mágicos e de forte religiosidade popular. Mas também cheio de violência e ciladas. Desses lugares tão desiguais no sofrimento e na alegria extraí a literatura que faço, os meus personagens. As pessoas me narram suas vidas e eu as transformo em contos, novelas, romances, crônicas e teatro. Sábato Magaldi afirmava que o artista busca falar com o seu tempo. Eu busco. Dora sem Véu se passa hoje, o que acontece no livro está acontecendo agora.

JC – Um personagem, Wires, um homem que costura roupas íntimas femininas, é uma amostra de um Sertão em mudança, com uma sexualidade fluída e aberta, por exemplo. O livro faz também um retrato desse Sertão, em que os costumes mudam e se reinventam?
RONALDO – Tenho paisagens sempre presentes no que escrevo: o sertão, o cariri cearense, o Recife, São Paulo, pedaços da Europa. Agora, também viajei pela Amazônia e convivi mais de perto com a ameaça do imperialismo americano, coisa que já tinha feito em Estive Lá Fora. Wires foi um achado, um rapaz que descobri por acaso e transformei num personagem, um representante do mundo sertanejo e agreste em transformação e depuração. Quando conheci Wires, o romance já estava bem adiantado. Mas ele se insinuou na trama, ganhou corpo e espaço, passou a dar o tom e o conceito do livro. Um achado esse Wires. Ele representa um novo tipo sertanejo em transformação e depuração, impensável no romance de 1930.

JC – O romance traz um gesto de outras obras suas: um interesse pela tradição e pelo arcaico sem idealização ou rejeição, apenas com um olhar do presente. Enxerga Dora sem Véu também como esse caderno de viagem, com uma visão ora generosa, ora distante do interior do Nordeste?
RONALDO – Talvez Dora sem Véu seja o livro em que eu mais assumo o nordeste brasileiro, reconheço o quanto fui formado e deformado por ele.

JC – Dora sem Véu vai fazer parte de uma trilogia de romances. O que se pode esperar dos demais livros? Algum dos personagens deve continuar?
RONALDO – Essa história de trilogia é apenas o meu desejo de escrever dois novos romance. Ainda me sinto com fôlego para isso. Quando apresentei a Moncho Rodriguez o último capítulo que havia escrito para Dora sem Véu, ele rejeitou-o dizendo: mas o romance já acabou no capítulo anterior. E o que faço com isso?, perguntei. Ele respondeu: comece o seu novo romance. Aí vi que havia sobras demais, personagens pedindo para voltar, e decidi continuar escrevendo.

CRÍTICA

Logo no começo do romance Dora sem Véu (Alfaguara), a narradora Francisca anuncia: “Eu saldo as dívidas do pai”. Coube a ela ir atrás de Dora, personagem que ausente como um fantasma na obra, no meio dos romeiros no interior do Ceará. Assim, a professora universitária observa o Sertão brasileiro contemporâneo entre o fascínio e a distância, numa história recheada de histórias.

Ronaldo Correia de Brito tece essa narrativa com um ponto de vista feminino. Francisca, uma mulher de meia-idade, vive um casamento que há muito tempo é só de aparências. Seu marido, o médico Afonso, flerta com outras mulheres debaixo dos olhos de todos. Além disso, os velhos amigos dos dois discutem a experiência passada do Estrela Distante, barco que reuniu os estudantes de medicina para prestar apoio a indígenas na Amazônia.

Na romaria, Francisca conhece um rapaz, o jovem Wires, que cria roupas íntimas femininas. Há uma atração mútua por trás da distância que Francisca impõe por conta da diferença de origem e de escolaridade entre os dois. Wires, no entanto, é um personagem muito mais complexo do que pode parecer: tem uma sexualidade franca e diversa, é sensível e bruto, em uma imagem que Ronaldo faz de um Sertão que não é estático. Sua aparição é casual, mas logo ele se transforma em um caminho importante da obra.

Dora sem Véu continua, recuperando o contexto que gerou esses personagens e esse Nordeste. Na história da mulher desaparecida, aparecem os campos de concentração para refugiados da seca no Ceará – também o cenário da fé no Padre Cícero. A violência contra a mulher se faz presente em Hermógenes, homem que segue a romeira Daiane e é acusado de matar três garotas.

Francisca, ciente do destino e da maldição, diz: “Sei que há muitas Doras pelo mundo. Foi essa que me tocou procurar”. O romance se alterna, em alguns momentos, entre a tentação do comentário intelectual da personagem e as bonitas micro-histórias que surgem dentro dessa busca. Mas a grande cena de Dora sem Véu é o seu final fatidicamente realista, um sinal de que tudo e todos mudam para permanecerem melancolicamente os mesmos.

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