Quatro anos depois de ter lançado A Resistência, o escritor paulista de ascendência argentina Julián Fuks acaba de publicar pela Companhia das Letras A Ocupação. Em entrevista por telefone, ele conversou com a repórter Valentine Herold sobre o processo de criação do livro após uma residência artística e a urgência de produzir uma literatura política no Brasil de hoje.
Confira na íntegra a entrevista:
JORNAL DO COMMERCIO – O livro começa com uma cena brasileira terrivelmente real, o encontro do personagem Sebastián com um homem em situação de vulnerabilidade e uma criança pedindo dinheiro na rua. A temática do abandono social, da moradia, também permeia toda a história. De que maneira essa questão dialoga com seu cotidiano?
JULIÁN FUKS – Quando comecei a escrever esse livro, a ideia da ocupação nem estava presente e ele se chamava Os Olhos dos Outros. Eu ainda não tinha sido convidado a participar da residência artística [na Ocupação Hotel Cambridge, em 2016]. Eu queria capturar esses momentos de fricção com o outro, de perturbação e estranhamento.
Na verdade, esses encontros numa cidade como São Paulo são banais, a gente acaba não dando a importância devida ao choque que isso pode gerar, então escrever sobre isso é uma tentativa de desnaturalizar esses encontros, enxergar aquilo que a gente tende a desprezar. E a partir da residência o livro se transformou completamente.
Inicialmente, ela ia durar três meses, mas eu fui acompanhando a rotina da ocupação, tinha um quarto no edifício e, na prática, a gente vai se envolvendo com o movimento, então acabei me alongando durante o ano todo. No início eu não sabia que destino podia dar àquela experiência, mas aí me dei conta que se encaixava muito bem na ideia da alteridade de Os Olhos dos Outros. Mas o título que faria mais sentido deveria então ser menos poético mas, ainda assim, guardando uma ligação com meu livro anterior, A Resistência.
JORNAL DO COMMERCIO – O livro é todo construído em fatos de aproximações e distanciamentos. A fuga na ocupação e, ao mesmo tempo, a constante volta a si, à família. O leitor se depara sempre com a latente despedida do protagonista e seu pai doente, em contraponto à uma paternidade que começa a ser planejada.
JULIÁN FUKS – Quando concebi o livro, ele já era composto por esses três núcleos [o núcleo familiar do pai e da mãe, a ocupação do Hotel Cambridge e a vida de casal] que, a princípio, não se aproximavam tanto. São três histórias quase independentes, mas o que eu queria construir ao longo do livro era justamente esses contrapontos que você falou. Em todos há uma temática comum que, de um núcleo para o outro, vai e volta, ganhando novos sentidos.
JORNAL DO COMMERCIO – Assim como A Resistência, este é um livro de autoficção, um gênero que vem sido considerado por alguns críticos como saturado. Mas a impressão, por outro lado, é que, muitas vezes, a realidade ultrapassa a ficção em seus fatos...
JULIÁN FUKS – Quando ouço falar dessa ideia que a autoficção já está saturada tenho a impressão que isto é uma concepção um pouco mesquinha do que a autoficção pode ser, como se ela fosse algo fechado. Mas ela me parece muito aberta, não precisa ser um discurso narcisista sobre a própria vida do autor, sim um posicionamento mais próximo do leitor, que altera o fato ficcional em direção ao relato ambíguo. É uma forma de hibridismo.
Para mim, inclusive, ainda está no início, estamos começando a explorar a autoficção. Romper com a ficcionalidade estrita é, na verdade, um caminho que o romance menos vem seguindo! A ficção foi que se manteve quase intocada até a virada do século 21. O elemento autobiográfico é o de menos na autoficção, interessa muito mais a ruptura que ela provoca.
JORNAL DO COMMERCIO – Costuma-se dizer que em tempos de menor incentivo às políticas públicas culturais, a classe artística responde com um aumento na sua produção crítica. Você vem percebendo essa efervescência no Brasil ?
JULIÁN FUKS – Eu estou enxergando tudo isso que vem acontecendo como um susto e um desalento. É um absurdo o que está se fazendo com a cultura, existe um projeto evidentemente destrutivo, como nenhuma proposta positiva de desenvolvimento. Ao contrário, se quer corroer e destruir ao máximo a cultura.
Mas o que sinto na prática é que eles não seriam e não serão capazes de fazer isso. Sempre que se tentou calar a literatura, houve fracasso. Tenho defendido uma literatura política ultimamente não só porque o momento histórico exige, mas porque não faz sentido ignorar tudo isso que nos arrebata diariamente. Seria uma traição a mim mesmo se eu ignorasse, então não é só uma tentativa de resposta íntima, é aquilo que é possível fazer em resposta ao que mais tem mexido conosco.
JORNAL DO COMMERCIO – Essa é a ideia que fica ao ler A Ocupação, da literatura como tentativa de restituir algo comum a todos. E essa ideia é, inclusive, explorada no fim do livro, na troca das cartas com Mia Couto.
JULIÁN FUKS – Sim, esse outro se converge num todo. Ao longo do livro a noção de ocupação vem surgindo de diversas maneiras. Me dei conta que a própria literatura, as páginas de um livro, é um ato de ocupação. As páginas do meu livro foram ocupadas em várias dimensões.
Não proponho uma literatura política para sempre, mas num contexto agudo é importante que o livro seja um desses espaços de ocupação. No final, as cartas de Mia Couto representam ainda outro momento da literatura ocupada, que é convidar outro escritor dentro de suas páginas. Se deixar ocupar é permitir uma perda de controle, é deixar que algo externo interfira.