SALVADOR (BA) – Maria Bethânia nunca se esquece dos seus quintais, nunca se afasta deles. É parte do seu ofício. Ela própria quem afirma: “Sou uma voz do Brasil. E isso é o que mais me interessa. Sou brasileira e quero ser essa voz do Brasil”. Irradiando o brilho dourado de sua saia longa, ovacionada por uma plateia imensa – e cuja emoção reverberava na cantora –, ela subiu ao palco de Santo Amaro da Purificação, recôncavo baiano, na noite do último dia 1º para viver um dos mais importantes momentos de sua carreira – a comemoração dos 50 anos de sua estreia com o espetáculo Opinião (em 1965, no Rio de Janeiro). Na cidade onde nasceu e cresceu, a cantora reencontrou-se com suas origens, reafirmando o seu amor e sua dedicação à arte de cantar.
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Há anos Bethânia não se apresentava em Santo Amaro. “Já nem sei mais quanto tempo”, confessa em entrevista ao Jornal do Commercio, a emoção transbordando. “Fiquei emocionada. Cantar na minha terra, com um público daquele, nos meus 50 anos de carreira... Me comoveu. Na verdade, peguei (o repertório do show) Carta de amor e juntei com outras coisas de outros espetáculos. Fui fazendo o show com a vontade de cantar ali; não pensei em efeito. O que eu queria dizer em Santo Amaro eu disse.”
Quando apareceu naquele palco, Bethânia fez a cidade de grandes e bonitos casarios do século 16 reviver a trajetória daquela senhora de 68 anos no palco da festa da padroeira. Junto a seus músicos, Maricotinha se apresentou para uma multidão de fãs, conterrâneos ou não (havia gente de outros Estados do Brasil e até do exterior, como de Portugal, Argentina e Paraguai), amigos e familiares – entre eles, o irmão Caetano Veloso. Do início ao fim, a cantora se mostrou diante de uma grande oração de agradecimento pelas cinco décadas de carreira.
No show, a baiana provou, mesmo indiretamente, o porquê de sua efeméride profissional se chamar Agradecer e abraçar. “Hoje estou voltando à minha cidade, comemorando 50 anos de carreira. Há 50 anos estou cumprindo a missão que Deus me deu”, afirmou à plateia, entre um dos agradecimentos. No espetáculo, que ela abriu cantando Tudo de novo (“Eis aqui tudo de novo / A mesma grande saudade / A mesma grande vontade/ Minha mãe, meu pai, meu povo”) e encerrou com O que é o que é?, louvou suas origens, suas crenças e seus amores.
Bethânia é Santo Amaro. Leva consigo o jeito brejeiro deste povo fincado numa das mais bonitas cidades históricas do País. No dia do show, o penúltimo dia da novena de Nossa Senhora da Purificação, o local vivia a festa da devoção. Na matriz, a missa saudava a santa; nas ruas, as barracas de quermesses e o parque de diversão entretinham moradores e turistas, enquanto a banda marcial acompanhava a procissão com a imagem Virgem Maria acompanhada pelos fiéis. Já no palco, Bethânia uniu o religioso e o profano.
Sincrética, a filha de Dona Canô cantou as cachoeiras e as praias da região para reverenciar os orixás Oxum e Iemanjá. Pelos ventos, ela agradeceu a Iansã, a quem é consagrada, e saudou os seus ancestrais caboclos indígenas. “O Brasil tem fé, apesar da forçação de barra para que se abandone as coisas. E há de manter para sempre.” Lembrando de seus quintais – no sentido figurativo, daquilo que lhe ergue, lhe fortalece e, ao mesmo tempo, lhe ensina limites e dá liberdade – Bethânia também agradeceu, cantando, a ialorixá Mãe Menininha do Gantois e ao cantor e compositor Dorival Caymmi, seus mentores espirituais e musicais, respectivamente.
Sobre amor, Maria mergulhou nos clássicos. Emocionada, cantou Olhos nos olhos, Negue, Fera ferida e Sangrando; passeou pelos sambas de roda que “estremecem” Santo Amaro a cada fevereiro, nas festas de rua; e brincou, mesclando É o amor (Zezé di Camargo e Luciano) com Vai dar namoro (Bruno e Marrone) música que adora. “É de uma ingenuidade”, confessaria ao JC.
Na apresentação em Santo Amaro, também aproveitou para pincelar canções de sua nova turnê. Além da música-título do show comemorativo, ela emprestou sua interpretação para Non, je ne regrette rien (Não, não me arrependo de nada), celebrizada por Edith Piaf. “Adoro essa música. E nos meus 50 anos de carreira tinha que homenagear Piaf. E Cássia Eller também, que já fez uma outra versão dessa música. E Bibi Ferreira, que é a ‘dona’ de Piaf, meu agradecimento a ela, como diretora e como mestra.”
Ao fim do espetáculo, Bethânia levou consigo o carinho e os aplausos demorados do público. Estava ali a renovação do seu ofício. Ao erguer os braços, a cantora, mais uma vez, se entregou ao dom do canto. O fim da apresentação era o recomeço de uma caminhada, agora de agradecimentos e abraços por 50 anos de carreira. A turnê estreou no Rio de Janeiro, no início do ano, vai passar por São Paulo e chega ao Recife em 27 de junho. Eis, portanto, “uma voz do Brasil”, como ela se define.