No dia 13 de fevereiro de 1965, o Rio de Janeiro viu a Bahia subir ao palco do Teatro Arena “numa noite dedicada à classe teatral e à intelectualidade”, escreveria o Jornal do Brasil sobre o espetáculo. Essa Bahia era o Brasil, o País que sofria a miséria social e a política de exclusão e repressão, menos de um ano após o golpe militar. E via nascer, naquele sábado, uma voz surpreendente: era irradiada de um corpo esguio, com rosto brejeiro e personalidade arredia, moça alçada ao posto de protagonista de um dos mais importantes espetáculos do teatro moderno nacional. Nara Leão havia se afastado de Opinião, por estafa, quase dois meses depois da estreia do show; fora substituída, provisoriamente, pela atriz Susana de Morais. Até que, um mês depois, a tal baiana, nascida em Santo Amaro da Purificação, irmã de Caetano Veloso, atendendo por Maria Bethânia Viana Teles Velloso, deixava a plateia impressionada tamanha interpretação e verdadeira emoção ao dizer os versos de João do Vale, um dos mais famosos da música popular brasileira. Maria Bethânia, com seu “pega, mata e come”, surpreendia, estreava e nascia, assim, diante do Brasil.
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Homenageada amanhã na sua cidade natal, onde fará um show especial em praça pública, a cantora baiana tem feito de 2015 o ano de celebração de cinco décadas de carreira profissional. No último dia 11, lançou, no Rio de Janeiro, o show Agradecer e abraçar, com o qual vem ao Recife em 27 de junho. Uma festa dela e, claro, do Brasil, uma vez que, como disse o crítico musical Nelson Motta, na semana passada, Bethânia tem “uma vida inteira dedicada a cantar seu País, sua gente e os sentimentos de todos nós”.
A história de Maricotinha – menina trelosa na infância que gostava de jogar futebol na posição de meia-esquerda, sob alcunha de “Maria Esquerdinha” e sonhava em ser artista de circo – daria um grande roteiro de teatro. Maria Bethânia saiu de Santo Amaro para morar em Salvador, em 1960, época na qual começou a estudar teatro. Não demorou muito – na verdade dois anos depois – para que sua voz potente e marcante encantasse e ela pudesse emprestar seu gogó para trilhas sonoras. Em 1963, a baiana estava por trás das cortinas do espetáculo Boca de ouro, de Nelson Rodrigues, cantando Cadência do samba, com direção musical do seu irmão Caetano Veloso. Foi nessa época também que Bethânia conheceu Gilberto Gil e Gal Costa e, juntos, estrearam Nós, por exemplo, em agosto de 1964. No mesmo ano, a moça participou dos shows Nova bossa velha, velha bossa nova e Mora na filosofia. Mas um convite de Nara Leão fez a jovem de 19 anos migrar para o Rio de Janeiro para lhe substituir no show Opinião. Nara estava com problemas de saúde, precisava repousar. E o Brasil não imaginava que dali surgiria uma de suas maiores artistas.
No jornal Última Hora de 12 de fevereiro de 1965, o anúncio instigava os cariocas: “o melhor espetáculo da temporada” reestrearia no dia seguinte, apresentando Maria Bethânia junto a Zé Kéti e João Vale. Naquele dia, a cantora nascia nacionalmente dentro de um contexto inesquecível: faria parte do show tido como a primeira expressão artística de protesto contra o regime de 1964, “o show contra a ditadura, show-teatro. Grito, explosão. Protesto”, assim definido por Augusto Boal, diretor do espetáculo.
Ali, naquele 13 de fevereiro de 1965, Maria Bethânia nasceu em Opinião. Surgiu para mundo. Era, desde o início, a voz e a interpretação que marcariam o Brasil para sempre. Depois de ser voz que rasgava, virou voz que consola, que sangra, que faz amar, que faz rezar. Ali, naquele sábado, o Brasil viu surgir num corpo esguio, num rosto brejeiro e numa personalidade arredia, a filha de Iansã, parida por Dona Canô, menina dos olhos de Chico Buarque, mulher recatada e senhora amada por todos os seus fãs. “Seis meses e um diretor farão dela a maior cantora brasileira”, profetizava Millôr Fernandes, à época da estreia de Bethânia em Opinião. Cinquenta anos aí está ela, a intérprete brasileira de grandeza ímpar.