Crítica

Deixem Elza Soares cantar até o fim

No novo show A Mulher do Fim do Mundo, Elza canta como uma agulha roçando nas feridas sociais do País

Mateus Araújo
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Mateus Araújo
Publicado em 07/12/2015 às 16:07
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No novo show A Mulher do Fim do Mundo, Elza canta como uma agulha roçando nas feridas sociais do País - FOTO: Divulgação
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SÃO PAULO (SP) - Elza Soares é os cinco jovens negros assassinados pela Polícia Militar no Rio de Janeiro e os alunos espancados pela Polícia Militar em São Paulo. É também as mulheres negras minimizadas, desprezadas e maltratadas; as travestis assassinadas; a tapa na cara que o marido dá na esposa. Elza é os que amam no vazio, os que gritam por socorro, a voz do Brasil que muitos não querem ouvir. Mas ela é também a revolução que já está por vir – e que vai gritar queira a gente ou não. Elza Soares é A Mulher do Fim do Mundo e ai de quem não crer. 

Sentada num trono, no palco do teatro do Sesc Pompeia, em São Paulo, na última sexta e sábado, a cantora carioca apresentou o show de seu novo disco – que possivelmente será apresentado por ela no RecBeat em fevereiro, durante o Carnaval (o show estreou na capital paulista em outubro, no lançamento do CD. Nos dias 1 e 2 de dezembro ela levou a turnê para o Rio de Janeiro e no fim de semana voltou a São Paulo). O trabalho é um soco no estômago dos que querem estar aquém aos tantos fins de mundo que acontecem nas ruas, nas casas, nas nossas vidas. Mulher de voz irradiante, potente e verborrágica, naquele merecido altar, Elza era ali uma divindade, a Iansã que fala do morro e reverbera dentro de nós, no mangue em que estamos imersos.

Aos 78 anos, no palco, Elza Soares nos olhava do alto, como que com a voz sublinhada, em caixa alta, para dizer o quão viva está e o quão atual é seu canto. Da abertura ao fim do repertório, sua voz é agulha roçando nas feridas sociais desse nosso País. Entre ruídos, sons eletrônicos, guitarras gritantes, percussão pulsante e violinos que choram, Elza deixa de lado o samba para esturrar seu rock com arranjos tão modernos e ousados quanto sua voz. Amarra canções - todas inéditas - do seu mais recente álbum como quem briga com o mundo. Abre o show com Coração do Mar e depois vai desfiando-se com A Mulher do Fim do Mundo, e fecha com Comigo, nesta música afirmando a ancestralidade materna e feminina que lhe dá força (Levo minha mãe comigo/ embora já se tenha ido. /Levo minha mãe comigo/ talvez por sermos tão parecidos).

O caminho percorrido nesse show fala dos silêncios, dos amores, das dores. Das cidades abandonadas, das gentes descrentes. Se começa falando de si, lá pelas tantas ela fala do outro: em Maria da Vila Matilde (Porque se a da Penha é brava, imagine a de Vila Matilde), alerta as mulheres sobre se impor contra a violência; chama ao palco o cantor e ator Celso Sim, em participação especial, para cantar Benedita, sobre uma travesti em luta pela sobrevivência. Não deixa de lado seu grande hino A Carne - agora numa roupagem menos dançante, explorando bem e sempre o mantra "carne negra". E no meio desse caos, chora o coração vazio, cantando Malandro. É nosso deleite, nossa entrega, diante desse show tão ritualístico.

O espetáculo tem uma teatralidade particular. Do cenário criado com sacos de lixo pretos amarrados numa estrutura superior do palco e despedaçados no chão do palco, A Mulher do Fim do Mundo nos diz que é alguém vinda do lixo, mas tão logo solte sua voz ela canta mais alto, rompe com qualquer barreira que queriam lhe impor. Há uma força feminina que norteia essas canções. A voz de Elza sustenta a mulher forte que veio com tanta marra nesse ano para a música brasileira, como a Selvática de Karina Buhr. Mas no caso da carioca, essa guerreira ganhou aqui a figura madura e divina da Iansã (orixá da força, das tempestades e dos ventos) de cabelos vermelhos black power e saia comprida, calda imensa preta e brilhosa.

Na volta para o bis, a cantora ratifica esse impulso de transformação e superação, ao cantar Volta Por Cima. Ali é o arremate de tudo que vimos em pouco mais de uma hora de encanto. Naquele momento, estamos de frente com o que grita lá fora do teatro. É sintomático não associar o grito de Elza Soares aos tantos berros das ruas, das ocupações das escolas paulistas, nas favelas cariocas, dos mangues do Recife, nas casas e nas Câmaras. A Mulher do Fim do Mundo é de nos chacoalhar a todo momento, nos regojiza pelo verbo e pelo canto.

Parafraseando a própria cantora na canção-título do disco: Deixem Elza Soares cantar até o fim. E, por favor, ouçam Elza Soares cantar até o fim.

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