MÚSICA

Romulo Fróes marca a beleza fúnebre de Nelson Cavaquinho em 'Rei Vadio'

Músico paulista mergulha no universo trágico de Nelson Cavaquinho e propõe releitura ousada

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 05/04/2016 às 7:57
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Músico paulista mergulha no universo trágico de Nelson Cavaquinho e propõe releitura ousada - FOTO: Foto: Divulgação
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“Eu me interesso por gente que queira mexer com as fronteiras”, diz Romulo Froes, ao lançar Rei Vadio (Selo Sesc; R$ 20), disco de releituras de Nelson Cavaquinho e seu primeiro como intérprete. 

Depois de cruzar o samba com uma polifonia ruidosa no grupo Passo Torto e explorar o sublime do caos urbano em Barulho Feio (2014), este mergulho na poesia lúgubre de Nelson é um movimento mais do que natural para o cantor e compositor paulistano, que já havia gravado e regravado Mulher Sem Alma em Cão (2006), seu segundo álbum, e escrito um ensaio sobre o sambista para Folha de São Paulo.

Diferente da melancolia luminosa de Cartola, Nelson é trágico e irredutível: aceita a derrota como acalanto. Suas músicas (muitas sobre morte) residem num jogo quase barroco de luz e sombras. Nas entranhas de sua desesperança, há algo resplandecente, uma beleza fúnebre. Daí descende e desenvole-se uma linhagem de compositores do estranho, da cidade escura e dos personagens opacos: Jards Macalé, Walter Franco, Arrigo Barnabé e, também, o próprio Romulo Fróes.

“Quem me apresentou à música de Nelson foi o Nuno (Ramos, artista visual e compositor) nos anos 1990. Eu era muito ligado no rock inglês, aquela coisa gótica de Joy Division, The Cure... essa coisa escura e triste. O Nuno falou: ‘você gosta dessas coisas deprês aí, então ouve esse cara’. Na época eu já conhecia e gostava muito do Cartola, mas Nelson foi um renascimento”, conta Romulo. 

O som cru do violão de Nelson – que, da mão direita, usava apenas dois dedos, beliscando as cordas – serviu como um impulso criativo para o músico. “Foi um acontecimento. Lembro de ficar muito assustado: ‘como é que deixaram esse cara gravar!?’ Eu nunca tinha ouvido um disco com esse violão ‘mal tocado’. Eu, que não tenho relação de instrumentista, pensei que dava pra tocar. Você não precisava ser Banden Powell, Gil, João Gilberto. Era possível tocar desse jeito absolutamente caótico e selvagem, um vocabulário de música que não passe pela beleza grega”, relembra.

"A maior de delaração de amor aos meus ídolos é que eu posso negá-los a hora que eu quiser"

Boa parte do repertório de Rei Vadio é de músicas menos conhecidas e mais obscuras, como História de Um Valente, Cinza e Luto – esta última tirada do LP Thelma Canta Nelson Cavaquinho (1966), de Thelma Costa, primeiro disco a registrar Nelson como cantor. Para Romulo, a questão é mais ampla: “Nelson Cavaquinho é um grande lado B. Até Juízo Final, que tocou na novela [A Regra do Jogo, na voz de Alcione] ninguém sabia que era dele”. 

Sobre as faixas escolhidas, ele explica: “Não quis cantar canções muito biográficas da relação dele com a mangueira ou de homem negro, velho, sambista do morro. Não vou cantar coisas como ‘As rugas fizeram residência no meu rosto’ ou ‘Fico feliz em Mangueira porque/ Sei que alguém há de chorar quando eu morrer’. Ninguém vai chorar por mim na Mangueira”, brinca. Evitou também duas outras: “Arreguei pra Duas Horas da Manhã, por causa da gravação do Paulinho da Viola, e Folhas Secas, da Elis Regina. Irretocáveis, não tem mais o que dizer”.

Rei Vadio, a música, ficou de fora (em seu lugar, temos Rei Vagabundo), mas virou título como uma imagem-síntese do mangueirense: “Me encantei pelo título e achei uma grande definição do Nelson. Aquele jeito pobre, condições muito precárias, como mostra o documentário do Leon Hirszman. E você não tem pena porque ele é rei, tem uma postura de nobre, livre da existência. É rei mas é vadio, bebe cachaça, vende samba pra quem tiver por perto, tem as cordas vocais estragadas...”. O choro Caminhando, originalmente instrumental, ganhou uma letra de Nuno Ramos que, na voz de Ná Ozzetti, retrata esta vida dupla de Nelson, dando e tomando esmolas, patrulhando ruas a cavalo como policial, levando galinhas para casa.

Além de Ná, Romulo conta com as participações de Criolo (em Luz Negra), Dona Inah (Eu e as Flores) e um coro feminino da Velha Guarda Musical da Nenê de Vila Maltide (Vou Partir). Já Curumim faz a vibrante introdução de bateria em Mulher Sem Alma

“As cantoras da Vila Matilde nasceram e foram criadas na escola de samba. A Dona Inah, uma senhora octagenária, canta em Eu e As Flores porque ela sabe é uma espécie de  Nelson de saias e sabe o que significa aquela letra. E eu queria ressaltar o lado cantor do Criolo, que pouca gente repara. É um dos grandes cantores da música brasileira atual”, pontua Romulo.

“O disco foi criado inteiramente no estúdio. É muito fresco de ideias. Com isso, quis chegar um pouco perto das arestas do Nelson, dos ‘defeitos’, da coisa não acabada”, explica.  “É experimental no sentido de tentar coisas. Não é um disco hermético. Sempre busco nos meus trabalhos uma beleza pelos caminhos não óbvios. O Nelson pra mim é isso: produzir beleza a partir de um conjunto caótico, desagradável em temas sobre a morte e desgraças”, conclui.

Para recriar a canção brasileira

Rei Vadio é mais um passo de Romulo Fróes em seu projeto estético de reconfiguração das estruturas da canção brasileira – um agenciamento coletivo que envolve e dialoga com os parceiros Rodrigo Campos, Thiago França, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Juçara Marçal (destes, só Juçara não toca no disco).

O trabalho gera controvérsias. De um lado, é celebrado como sopro de criatividade, uma desconstrução da música brasileira. Já os críticos mais tradicionais e puristas ainda são, no mínimo, receosos. João Máximo, autor de livros como Noel Rosa – Uma Biografia e Bossa Nova: do Barquinho ao Violão, escreveu uma resenha de Rei Vadio intitulada Harmonia? Nenhuma. Moderno? Pode Ser

“Poderia ser o título da minha biografia”, brinca Romulo. “É obvio que o João Máximo não gostaria, é um sujeito de 80 anos. Acho-o um grande escritor e, aliás, nunca esperaria a honra de ser ouvido por ele. É um cara que poderia dizer que é uma modernidade vazia. Eu gosto porque ele fica em dúvida, não sabe muito bem o que é que está ali”, comenta.

O álbum transita entre os polos tradição/modernidade, instalando-se no espaço do meio. Fica entre a pulsação rítmica do samba, provida pelo percussionista Wellington Moreira, o “Pimpa”, e as dissonâncias harmônicas do violão e guitarra de Kiko e do cavaco, ora distorcido, ora acústico de Rodrigo. 

“Eu tive esses dois parâmetros muito caros do que eu não queria. Eu não queria fazer um Barulho Feio do samba, montar uma banda de rock e colocar uns ruídos e pronto. E também não queria ser reverente a ele [Nelson] ou ao Caetano ou ao Tom Jobim – no sentido subserviente, medroso da palavra. O maior elogio, a maior declaração de amor aos meus ídolos é que eu posso negá-los a hora que eu quiser”, afirma. 

“Toco o samba como ritmo de invenção”, propõe. “A música brasileira foi inventada pelo samba e a gente lida com o samba como algo que a gente pode mexer, que pode contribuir, criar uma outra sintaxe para ele. Não é como uma peça de museu, intocável, relíquia”.

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