Em agosto de 1970, Miles Davis e seu sexteto subiram ao palco do festival Isle Of Wight, na Inglaterra. Após uma apresentação histórica de pouco mais de meia-hora de improvis, alguém perguntou ao jazzista o nome da música que ele havia acabado de tocar. Miles respondeu simplesmente: “Chame como quiser”.
É comum que o improviso se torne um exercício vão e obsessivo de técnica. Mas, nos melhores casos (como o exemplo de Miles), a prática cria um espaço no qual as experimentações são mais livres e as interações mais espontâneas. É sob esta direção que o produtor Cadu Tenório e o rabequeiro e saxofonista Thomas Rohrer constroem Fórceps, álbum recém-lançado pelo selo carioca Quintavant.
Expoentes da música contemporânea brasileira, ambos têm currículo extenso. Cadu assina o projeto solo Victim! e já tocou com as cantoras Alice Caymmi e Juçara Marçal e o poeta Márcio Bulk, entre outros. Já Thomas, suíço radicado no Brasil, alia tradição e vanguarda: toca com o mestre Nelson da Rabeca e com o coletivo Abaetuba e ainda improvisa junto a músicos experimentais destacados como Rob Mazurek, Hans Koch e Panda Gianfratti.
Cadu e Thomas já tocaram juntos várias vezes – numa delas, acompanharam Jards Macalé na desconstrução do clássico O Banquete dos Mendigos (1974), dentro da temporada de shows Macalândia, na Audio Rebel, ano passado. Fórceps, no entanto, é seu primeiro disco em parceria.
A fagulha do projeto surgiu ano passado, quando Cadu viu Thomas tocando com Juçara Marçal no show Encarnado: “Ele usou um fouet (batedor utilizado na cozinha) processado por pedais com o arco da rabeca. Fiquei impressionado pelo inusitado que é aquilo no meio do show. E é um objeto cotidiano. Como eu sempre uso sons de objetos cotidianos, foi uma identificação natural ali”, conta Cadu.
A gravação do disco foi conturbada. Em dezembro de 2014, foram em trio junto com Arthur Lacerda (do Dedo) ao estúdio da Audio Rebel, mas acabaram perdendo todo registro. Em março de 2015, já sem Arthur, Cadu e Thomas se reuniram novamente, mas uma tempestade causou uma pane elétrica no estúdio e as gravações do dia foram quase inteiramente perdidas. Em agosto, pela terceira vez, conseguiram enfim captar tudo.
“Por um lado isso foi legal, porque na terceira vez já sabíamos exatamente o que melhor funcionava, apesar de que é triste saber que perdemos uma sessão de duas horas que no dia achamos boa pra caramba (a primeira)”, avalia Cadu.
Ao editar os áudios, Cadu opera sob propostas delicadas: precisa manter acesa a chama daquele primeiro instante e ao mesmo tempo desenhar uma linha narrativa. “Tendo como objeto o Fórceps e outros trabalhos de improvisação como o VASO, é interessante notar que essa edição é mais voltada a escolher onde as coisas começam e onde terminam. Uma coisa que eu prezo muito é por manter a interação intacta, os encontros e desencontros, o miolo dos músicos interagindo. Eu não interfiro nisso. A única coisa que rola um cuidado grande na maioria dos discos de improvisação que participo é onde as faixas começam e terminam. E, no fim, a ordenação, que eu gosto de ter a liberdade de ‘compor’ a ordem da escuta, como num disco mesmo. É aí que a cara do disco fica mais nítida pra mim, quando chegamos em uma ordem que flui melhor. Às vezes é a própria ordem de gravação, mas às vezes não”, analisa o produtor.
A força motriz de Fórceps está justamente nessa linha tênue. Há uma conversa entre espaços vazios e explosões de ruído (por parte de Cadu) com os berros do sax e gemidos estridentes das cordas e corpo da rabeca (colocados por Thomas) e as gravações de campo dos dois músicos. Os cortes repentinos de entrada e saída das faixas curtas vão contornando a brutalidade que a imagem do fórceps, no título, oferece.
No centro disso está a improvisação, posta aqui como mecanismo de diálogo criativo. As faixas mais longas, 2 e 5, mostram a simbiose milimétrica entre os músicos. Um processo de escutar o outro, e no outro se reconhecer e se recriar –“aprenda tudo, então esqueça tudo”, dizia a máxima do jazzista Charlie Parker.
“É muito mais importante ouvir do que tocar. E é importante parar, escutar e procurar a melhor forma de acrescentar. Isso vale pra todos os envolvidos”, reflete Cadu. “Improvisação pra mim está bem além do ‘qualquer coisa’. É uma linguagem, uma maneira de dar forma também”.
“Acho curioso quando esse aspecto do improviso não é levado em conta. Parece que improvisar é só uma frivolidade, que é uma sessão gravada sem por quê. Pra mim, é buscar uma forma; pro Thomas também, é ação e reação. No fundo, pra muitos músicos, são propostas de diálogo onde cada um chega com uma pauta pra discutir e só saem dali quando conseguem chegar num denominador comum”, conclui.