Um rio carregado de saudade tomou conta do Recife na noite do último sábado. Oito anos após uma pausa silenciosa, o Cordel do Fogo Encantado oficializou a volta aos palcos com um show catártico, realizado para um Clube Português lotado de fãs alucinados. Como cavaleiros caminhando rumo a um novo tempo, Lirinha (voz e pandeiro), Clayton Barros (violões e voz), Nego Henrique (percussão e voz), Emerson Calado (percussão e voz) e Rafa Almeida (percussão e voz) entraram em cena pouco depois de 1h da manhã de ontem, sob gritos estridentes para uma apresentação com ares de culto.
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Sideral (ou Quem Ama Não Vê Fim), uma das novas músicas apresentadas no recém-lançado Viagem ao Coração do Sol, foi quem abriu a noite. Produzido pelo cearense Fernando Catatau, o álbum que batiza a turnê foi bem recebido e tem contado com a luxuosa companhia da jovem cantora e atriz Isadora Melo, que divide os vocais com Lirinha em algumas faixas, a exemplo da bela Eternal Viagem.
Mas foi difícil para as novatas disputarem atenção com clássicos como Antes dos Mouros, Na Veia, Morte e Vida Stanley e A Matadeira, cantadas a plenos pulmões e durante as quais foi praticamente impossível ouvir a voz do frontman. Durante rara conversa com os presentes, Lira relembrou de onde partiu a inspiração para esta última. “A Matadeira foi uma arma usada pelo Exército Brasileiro para acabar com um ‘problema’, uma comunidade que vivia lá no Alto da Favela, chamada Canudos”, detalhou o compositor em referência ao movimento popular liderado por Antônio Conselheiro no fim do século 19. “Não beberemos da água do esquecimento.”
Forjado no teatro e na poesia popular, Lirinha não pode deixar de lado a declamação e debruçou-se sobre Ai Se Sesse, do paraibano Zé da Luz, e Os Três Mal-Amados, de João Cabral de Melo Neto, ambas acompanhadas em coro pelo público. Cada movimentação, pausa e entonação do vocalista foram acompanhadas por olhos atentos, de um público jovem, mas majoritariamente formado por fãs de rostos mais maduros, de quem viveu o auge do Cordel. Além dos recifenses, grupos vindos de Arcoverde, Sertânia e outras cidade do interior ajudaram a coroar o clima de reencontro.
Caminhando para a segunda hora, o espetáculo chegou à apoteose com Chover (Ou Invocação Para um Dia Líquido), a música famosa por literalmente fazer cair água por onde o Cordel do Fogo Encantado passa. A saga do sertão que vê a agonia da seca se acabar até ‘boi nadar’ foi comemorada aos gritos de “Ô, o Cordel voltou!”, com direito a Clayton Barros caindo no choro. Na plateia, muitos também se renderam às lágrimas. “Que saudade, Recife”, rendeu-se o violonista.
Apadrinhado pelo percussionista Naná Vasconcelos, produtor do álbum homônimo de estreia (2001), o quinteto homenageou o músico falecido em 2016 com Primeira Paisagem (Ou Flor Molhada), além de dedicar a ele toda a turnê Viagem ao Coração do Sol. Após se ausentarem do palco, retornaram para se despedir de mais de duas horas de show com Preta, O Palhaço do Circo Sem Futuro e Catingueira.
Certeira foi a decisão dos filhos do sertão em retornar aos braços do público neste exato momento. Fosse antes, o impacto gerado talvez não refletisse tão bem a ânsia dos fãs por uma banda que trouxesse a força que o Cordel tem ao vivo, principalmente quando clama em nome de lutas coletivas e populares num instante de incertezas e embates políticos. Como convite à continuação da nova caminhada, Lira convocou a todos para o São João de Arcoverde, onde acontece o próximo show no Estado.
ABERTURA
Antes do Cordel tomar conta da noite, passaram pelo palco as bandas Radiola Serra Alta, Aninha Martins, Almério e Tagore, com shows curtos, com pouco mais de 30 minutos, como pílulas do que Pernambuco tem produzido. Fechou a festa o popular Coco Trupé de Arcoverde, que caminhou junto aos mais empolgados até o amanhecer.