Entrevista

Emicida traz os caminhos de sua sólida estrada para a Mimo

O rapper Emicida, que se apresenta neste sábado em Olinda, fala sobre os novos caminhos do rap e cobranças sobre suas origens; confira entrevista

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 23/11/2018 às 12:23
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O rapper Emicida, que se apresenta neste sábado em Olinda, fala sobre os novos caminhos do rap e cobranças sobre suas origens; confira entrevista - FOTO: Foto: Divulgação
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Emicida nunca parou de falar da rua, das quebradas do Brasil, de sua mãe, Dona Jacira e da possibilidade do povo preto de sonhar alto. O mais prestigiado "rueiro" vem colhendo os louros de uma caminhada sólida, comemorando 10 anos de seu single-catapulta Triunfo e prestes a celebrar também uma década da poderosa mixtape Pra Quem Já Mordeu Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe.

Olinda entrou na rota dessa comemoração com a Mimo, onde o rapper faz show hoje, às 0h30. Olhando em retrospecto, ele vê constantes e variáveis. “Acredito que minha fé na música como força maior que tem poder pra transformar o mundo em um lugar melhor é o que permanece igual. Ampliei meus horizontes de um jeito que nunca imaginei. Esse é meu maior empenho, ser reconhecido como elemento que inspira pessoas com origem parecida como a minha”, conta.

Confira entrevista

Ano que vem, o Pra Quem Já Mordeu Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe completa 10 anos. O que mudou nas suas visões de mundo e artísticas de lá pra cá? O que permanece igual?

Acredito que minha fé na música como força maior, que tem poder pra transformar o mundo num lugar melhor, é o que permanece igual. Mudanças foram várias, acho que se não houvessem tantas a última década seria um desperdício para mim e já pensou jogar 10 anos fora? Eu vi o mundo, conheci gente de tudo quanto é tipo, ampliei meus horizontes de um jeito que nunca imaginei e tudo isso buscando ser um ser humano melhor, esse é meu maior empenho. Ser reconhecido como elemento que inspira pessoas com origem parecida como a minha, mudar a visão do brasil a respeito de si mesmo e quebrar tantas barreiras, mercadológicas, preconceituosas e internas é o que me faz ficar alegre quando olho. Acho que falando de arte sou mais técnico, mais capaz de organizar o que quero, tudo isso devido ao estudo ao qual me empenhei nos últimos anos e obviamente a melhor universidade de todas que é a universidade da prática.

"Direto eu vejo o hip-hop na maca, com gente igual eu dizendo 'pelo amor de deus, Doutor!’”, diz a Hey Rap!. Nesses quase 10 anos, você acha que hoje, o hip-hop e o rap em si está ficando cada vez menos "na maca"? Tá recuperado? Como você vê o rap de hoje?

O digital acentuou um fator que já era importante no tempo do analógico. Tudo depende de onde você olha. Se formos falar em números, acho que temos que ficar alegres sim, cada vez menos há uma resistência do mercado ao gênero rap, mas não podemos viver somente com bases nos números, não somos calculadoras, precisamos cruzar esses dados com outros e isso nos traz a realidade. Por exemplo, hoje existem mais pessoas sem um background de hip-hop dentro do hip-hop, gente sem vivência de rua, e isso é muito importante. Gente que não sabe o que é ser pobre, ou preto e começa a surgir, dentro dessa tônica nojenta dos dias de hoje, gente que tem ojeriza a temas intrínsecos ao hip-hop. Se entendermos a música rap como um gênero como qualquer outro que tem como foco a vendagem e assimilação do mercado somente, então essa meta foi cumprida. Mas a cultura hip-hop é mais que isso, ela é a principal ferramenta de comunicação e conexão da diáspora africana e se olharmos por esse angulo, a cultura continua na maca pois criamos coisas maravilhosas e vemos a nossa propriedade sobre elas ameaçada de tempos em tempos. 

O rap, por todo seu contexto sociocultural, é um dos ritmos em que os artistas são mais cobrados para "manter suas origens"? Para você, o que significa esse "manter suas origens"?

Há uma dualidade interessante nisso também. No Brasil tudo precisa ser analisado com cuidado, existem pessoas que te dizem para manter suas origens por ver em você um elo entre a pobreza e o sonho, o vínculo que muitos tem com a fé é a nossa voz, o único às vezes, então para esses, manter as origens é tenha os pés no chão, reconheça sua realidade, mantenha-se um de "nóiz", mas não tire também sua cabeça dos céus é a forma deles dizerem que voam agarrados em nossos sonhos também e se isso mudar, mais uma vez serão abandonados como se sentem abandonados pelo poder público, por exemplo. Mas existe também uma faceta perigosíssima do manter suas origens quando ele é apenas uma roupa bonita no sofisticado racismo brasileiro e nesse sentido, pessoas que acreditam que negritude e miséria são sinônimos te cobram para que você não ocupe lugares nunca ocupados por pessoas como você, assim, manter suas origens é uma forma rebuscada de dizer - fiquem nas favelas para sempre. Sempre é preciso analisar com cuidado de onde vem a cobrança que exige que "mantenhamos as nossas origens". 

Você sempre deixou claro que a literatura tem grande influência em seus processos criativos, citando de Neruda a Gil Vicente e dando seus passos na literatura infantil. Quão importante você diria que a literatura é para sua música?

Eu sou um contador de histórias, a oralidade me despertou mas a literatura enriqueceu meu potencial. A palavra escrita é uma das maiores conquistas da humanidade, amo livros, gosto até dos que odeio. A importância da literatura em minha criação é que sem ela minha criação não existiria. Foram as histórias dos outros que me encorajaram a contar a minha humildemente. 

Falando em universo infantil, você costuma trazer faixas com tons leves, falando de infância, sua filha e afins. Entretanto, o rap também carrega letras mais fortes e, digamos, agressivas. Você acha que existe alguma forma ideal de fazer uma criança/adolescente começar a ouvir rap? 

Sim, tem que começar ouvindo Emicida (risos). Acho que não tem uma idade ideal para começar a ouvir rap. Uma vez o KRS-One falava sobre pessoas que alertavam ele sobre ouvir aqueles sons pesados próximo das filhas e ele disse que quando você ouve Method Man, um outro rapper norte americano e vê ele cruzar através de metáforas a dura realidade das ruas, a magia de Shaquille O’Neal jogando basquete e o impacto destruidor das drogas, ele acha que aquilo é algo interessante sim para a filha dele ouvir. Eu concordo. Primeiro por que Method pega uma série de coisas ruins e reais e cria uma obra de arte fantástica, como Picasso fez, isso ensina sobre nosso poder de transformar o negativo em positivo, transformação. Segundo, por que tudo depende de como você quer que seu filho conheça histórias ruins presentes na nossa realidade, não que isso seja 100% controlável, é óbvio, mas ao apresentar essa forma de arte e acompanha-la junto com seus filhos, você vai poder conversar sobre tudo isso e sanar duvidas que assombram os jovens desde sempre, diminuindo a tentação. Então as histórias ruins estão aí, a forma que apresentamos elas pros nossos pequenos vai influenciar se eles serão espectadores ou protagonistas delas. 

A Mimo é um festival que sempre contemplou diversos ritmos e você sempre se mostrou bem aberta a incorporar diversas sonoridades. Acha que o convite para o festival vem disso? O que você acha que vai levar de bagagem dessa experiência?

Eu amo a Mimo, para mim é uma alegria poder participar e mais ainda, ver o festival crescendo e se tornando uma data importante em tantas cidades bacanas. Independente de tocar ou não num determinado ano, sempre fico feliz pois sei da guerra que é lutar pela arte nesse país, as conversas, bate-papos, shows são divertidos e edificantes, com certeza sempre volto maior de cada edição da Mimo que vou.

Como será o show que você vai apresentar? O que o público pode esperar?

Vamos nos inspirar no último DVD lançado que comemora os dez anos de Triunfo, mas show é sempre uma incógnita, chegando lá sentimos a vibe do lugar e tocamos outras coisas, prefiro deixar que o show nasça na hora de acordo com a energia do público.

Você acredita que o momento político atual muda, de alguma forma, a tônica do seu show?

Não. Por que tenho um centro muito forte. O momento atual na politica e em parte da sociedade é resultado de tudo que o brasil fez de errado, eu sou o extremo oposto disso. Sou resultado de tudo que o país tem de bom, canto pela vida desde o primeiro momento em que peguei um microfone. A energia do show é sempre um grito de possibilidade, de viver mais em geral, explosão de vida mesmo. A mediocridade não vai sequestrar a tônica do meu discurso nem da minha arte. Nossa vida sempre foi luta.

Nos últimos meses, você vem lançando algumas músicas. Tem disco ou algum outro projeto vindo por aí?

Acho que tenho coisas a dizer para o mundo em 2019, fiquei observando desde 2015, tentando ver se minha voz se fazia necessária. Estou organizando quais histórias gostaria de contar e acho que isso vai virar um disco novo. É meu primeiro projeto pós-África, estou a 4 anos analisando tudo que aconteceu comigo naquele continente e quem sou depois dessa experiência, por isso tem demorado tanto um disco novo. Agora estou começando a entender, a sentir e a conseguir organizar em ideias essas sensações. 

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