O consumidor de saúde no Brasil vive uma encruzilhada: praticamente sem opções para contratar planos individuais e familiares, considerados o ouro do mercado, virou refém dos planos coletivos. O problema é que, a cada ano, a insatisfação com esse tipo de contrato cresce, levando muitos usuários aos tribunais. As ações na Justiça dizem respeito principalmente a reajustes abusivos e quebras de contrato – justamente os dois aspectos que não são totalmente regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Não é de hoje que as operadoras figuram, juntamente com telefonia e instituições financeiras, entre os setores mais reclamados nos órgãos de defesa. Nesse mercado de 50 milhões de pessoas, há muita gente insatisfeita, sejam beneficiários individuais ou coletivos.
O policial rodoviário federal aposentado Luiz Alberto do Nascimento, 60 anos, viu, em quatro anos, seu plano coletivo por adesão ser reajustado em 256%. Pior: não aceitando o reajuste proposto em 2014, a entidade de classe ficou ameaçada de ter o contrato cancelado. Somente por meio de medida judiciais é que os reajustes abusivos foram afastados e o contrato foi mantido. Em 2014, a ANS limitou em cerca de 9% o índice máximo de reajuste para planos individuais e familiares.
O Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) não possui dados compilados do crescimento das ações judiciais contra planos coletivos, que já dominam 80% do mercado. Isso porque os processos podem aparecer com diversos nomes. Mas o juiz titular da 1ª vara cível do TJPE atesta: a cada ano, cresce a pilha de processos. Ele também é professor da cadeira de direito do consumidor da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco e membro do Comitê Executivo Nacional de Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em São Paulo, por exemplo, os casos tiveram crescimento perto de 15%, segundo levantamento feito por um escritório de advocacia especializado com base nos dados do TJSP.
Segundo Moutinho, em muitos casos, os reajustes chegam a até duas ou três vezes o valor inicial da mensalidade. De modo geral, os juizes têm se posicionado a favor do consumidor, principalmente em casos de quebra unilateral de contrato, permitido para os coletivos após um ano e com comunicação prévia. “Mas, a maioria dessas decisões tem sido proferida através de liminares, com antecipação de tutela”, observa, lembrando que, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), ainda não se desenhou uma unanimidade sobre o assunto.
“Os consumidores, sob a ilusão de pagarem mais barato, são estimulados a abrir CNPJ ou ingressar em determinada associação ou sindicato, utilizando qualquer CNPJ para conseguir um contrato coletivo. Essa foi a forma encontrada pelas empresas de planos de saúde para fugir da legislação e da fiscalização da ANS”, explica a advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Joana Cruz. Existem dois tipos de coletivos. Os por adesão, em que o contrato é firmado por meio de uma organização, que pode ser, por exemplo, sindicatos, associações ou entidades de classe. E os empresariais, em que o contrato é celebrado entre a empresa em que o consumidor trabalha e o plano de saúde.
Na avaliação dela, a maioria dos reajustes não é colocada de forma clara, desrespeitando o direito básico do Código de Defesa do Consumidor, que obriga a clareza e precisão da informação. Na verdade, muitos usuários sequer chegam conhece o contrato. É o que mostra uma enquete realizada pelo Idec em 2014. De 908 pessoas que responderam, 86% disseram não ter recebido o documento no momento da adesão ao plano. Desses, 21% não tiveram acesso ao contrato nem mesmo após solicitar à operadora do plano ou à empresa intermediária.
Ainda é baixo o percentual de consumidores que procura a Justiça
Uma servidora do Estado que não quis se identificar também tem um caso para contar. Atraída pelo preço mais em conta, resolveu deixar o plano individual e aderir a um coletivo. Resultado: em um ano, viu a mensalidade saltar de cerca de R$ 300 para mais de R$ 1,5 mil. A justificativa da operadora? Mudança de faixa etária (ela estava com 59 anos) e sinistralidade (utilizada pelas empresas na tentativa de equilibrar a elevação dos custos por uso dos associados).
Sem condições de pagar, a servidora procurou a Justiça. Recentemente teve ganho de causa e conseguiu diminuir a mensalidade para cerca de R$ 500, arcando apenas com o reajuste anual. “Se eu não tivesse entrado na Justiça, provavelmente estaria sem plano”, diz.
René Patriota, da Associação de Defesa dos Usuários de Seguros, Planos e Sistemas de Saúde (Aduseps), também chama atenção para casos em que o titular do plano falece e os dependentes acabam excluídos do contrato. “É o que se chama de perder a elegibilidade, deixando o consumidor na mão”, detalha. Algumas administradoras também não calculam como mensalidade o primeiro pagamento, repassado ao corretor.
Apesar do aumento dos casos, o advogado do Instituto Apolo em Defesa da Vida e da Saúde, Diogo Santos, chama atenção para a desproporção entre a quantidade de gente que reclama e efetivamente busca seus direitos e a quantidade de gente que é prejudicada. As reclamações estão pulverizadas entre órgãos de defesa, ANS, judiciários, call center das empresas. “Muitas vezes, para as operadoras, é mais vantajoso financeiramente descumprir o contrato do que cumprir com todas as obrigações”, acrescenta. Em 2013, a Associação Paulista de Medicina em parceria com o Instituto Datafolha constatou que 79% dos clientes de planos de saúde haviam enfrentado dificuldades ao acionar as operadoras nos últimos dois anos. A média de conflitos por cliente era de 4,3.
Com a palavra, Abramge e ANS
É preciso deixar claro que são considerados “falsos” coletivos os contratos coletivos por adesão compostos por indivíduos sem nenhum vínculo representativo com a entidade contratante do plano de saúde. Isso, por lei, não é permitido. Já os planos coletivos por adesão, em que a pessoa jurídica contratante é uma associação, um órgão de classe ou sindicato, não são considerados falsos coletivos. Da mesma forma, não há qualquer ilegalidade no fato de pequenas empresas contratarem planos coletivos empresariais.
Para proteger os beneficiários de pequenos grupos que possuem representatividade, já que são grupos que ficavam mais vulneráveis, a ANS publicou a Resolução Normativa nº 195/2009, que regulamentou a necessidade de vínculo associativo, de classe ou empregatício para adesão a um contrato coletivo. A resolução trouxe uma série de benefícios aos consumidores, como a definição do conceito de quem pode ser contratante; proibição de mais de um reajuste por ano (com exceção do reajuste por faixa etária); e novas regras para carência e cobertura parcial temporária.