“A cachaça vem dos mais velhos dias do Brasil”, escreveu Gilberto Freyre, que gostava de preparar batida de pitanga para os amigos que lhe visitavam no Solar de Apipucos. Neste 2016, a mais autêntica bebida nacional completa 500 anos de história, com o desafio de desbravar o mercado externo. Por aqui, a pinga já passou pela senzala, pelo quilombo, pelos botecos e agora desfila seus sabores e aromas pelas mesas elegantes da “classe alta”.
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Registros históricos apontam que os primeiros goles de cachaça no Brasil foram bebericados em solo pernambucano, a partir de 1516, quando a bebida começou a ser produzida na feitoria de Itamaracá (no Litoral Norte). “Em seu livro Prelúdio da Cachaça, Câmara Cascudo escreveu: ‘Onde mói o engenho destila o alambique’. E foi isso o que aconteceu. Os portugueses já plantavam cana em Pernambuco e a prova está em um documento da alfândega de Lisboa de 1526, contabilizando o pagamento de imposto de uma carga de açúcar vinda de Pernambuco”, explica o engenheiro pernambucano Jairo Martins. Autor do livro Cachaça – O mais brasileiro dos Prazeres, ele é um dos maiores estudiosos do assunto no País e cachacista (espécie de sommelier da cachaça), como gosta de dizer.
O sucesso da cachaça foi tanto que a Coroa proibiu a venda da bebida em 1649, numa tentativa de conter a queda no consumo de vinho importado de Portugal. O impedimento estimulou um sentimento nacionalista pela bebida. Na Revolução Pernambucana de 1817, a cachaça foi um dos símbolos da luta contra o domínio português. Intelectuais e artistas da Semana de Arte Moderna de 1922 também recorreram à bebida como marca da identidade nacional. A pintora Tarsila do Amaral, aliás, foi uma das primeiras promotoras da cachaça no mercado internacional, com pequenas “exportações” para Paris, disfarçada em vidros de perfume.
Os cinco séculos de história ainda não foram suficientes para tornar a cachaça conhecida lá fora. Com 2 mil produtores registrados e fabricação de 800 milhões de litros por ano, o setor exporta apenas 1% da produção. No ano passado, a receita dos embarques alcançou US$ 13,3 milhões. É um número tímido quando comparado ao faturamento de US$ 1 bilhão da tequila mexicana. A diferença é que o vizinho latino-americano iniciou um projeto setorial desde os anos 1960.
Pernambuco manteve o pioneirismo nas exportações de cachaça, com o Engarrafamento Pitú fazendo o primeiro embarque para a Alemanha nos anos de 1970. Hoje a empresa faz exportação direta para 18 países e é distribuída por uma importadora alemã em 48 países da Europa. Da produção anual de 95 milhões de litros, 2,1% segue para o mercado externo. “A cachaça ainda tem muito espaço para crescer no mercado internacional, porque ainda é uma mera desconhecida. É preciso ensinar como vende, como bebe, como se planta a cana-de-açúcar. É um árduo trabalho de promoção”, diz a diretora de Relações Internacionais da Pitú, Maria das Vitórias Cavalcanti. Para exemplificar, ela lembra de uma venda que fez à África do Sul. “Mandamos o produto e depois o comprador passou três anos sem pedir outra remessa. Peguei um avião e fui lá para entender. Descobri que eles estavam vendendo a cachaça como se fosse gim, com água tônica e limão”, conta.
O gestor de Projetos Setoriais da Apex-Brasil, Eduardo Caldas, diz que as ações de promoção da cachaça estão avançando com participação nas feiras internacionais. A Agência e o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac) mantém convênio com investimento de R$ 1,3 milhão para promover o produto lá fora. “Hoje 38 empresas participam da iniciativa, com foco nos mercados da Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido”, destaca.
Um dos passaportes para o produto conquistar espaço lá fora é o reconhecimento da denominação de origem do produto. “A cachaça já é reconhecida como uma bebida legitimamente brasileira nos Estados Unidos, na Colômbia e, recentemente, no México. Em qualidade, a bebida não perde para nenhum outro destilado, além de carregar a imagem do Brasil. Mas o governo brasileiro precisa dar mais atenção aos produtos, que vêm sendo pesadamente tributados”, alerta o diretor executivo do Ibrac, Carlos Lima. Em dezembro, o IPI para o produto foi elevado. Para uma garrafa que custava R$ 25, o tributo passou de R$ 2,90 para R$ 6,25 (uma variação de 115%).
Em Pernambuco, a presidente da Apar, Margareth Rezende, diz que as empresas estão se diferenciando pela qualidade. O Estado é o segundo maior produto e principal exportador do País. O Estado tem oito marcas principais registradas e o título de berço da história da cachaça.