Entrevista - Fernando Henrique Cardoso
Após oito anos como presidente do Brasil, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso passou a se dedicar a um problema que ultrapassa fronteiras. Em entrevista por-email ao JC, ele fala sobre a ineficácia da ''guerra às drogas'' e da necessidade de encontrar outros meios para enfrentar este mal. FHC critica também as políticas de combate à produção e comercialização: ''Nada de muito proveitoso está sendo feito''.
JC - O senhor acha que o Brasil está preparado para debater a questão da descriminalização das drogas?
FHC - O assunto já está em pauta. Descriminalizar não se confunde com legalizar. Nossa legislação já não pune com cadeia os usuários de drogas, mas os traficantes. Embora ela seja ainda imprecisa na separação entre as duas categorias, o que leva muitas vezes a abusos policiais, prendendo usuários como se fossem traficantes.
JC - Por que o senhor resolveu encampar a realização desse debate?
FHC - Não diria encampar, mas participar dele. Comecei a me preocupar mais diretamente com o assunto dado o meu conhecimento do que ocorre na América Latina (Colômbia, México, América Central). A violência desatada pela política chamada de ?guerra às drogas?, visando a reduzir o consumo a zero pela destruição da produção, está sendo perdida, levando ao descrédito das instituições e da própria democracia, sem falar nos abusos contra inocentes.
JC - Durante o tempo em que foi presidente, o senhor acreditava que a repressão era o caminho mais eficaz para combater o problema das drogas. O que mudou?
FHC - Não é certo que na Presidência eu me ocupasse só da repressão. A Senad (Secretaria Nacional Antidrogas), criada por mim, tinha também o propósito de incentivar a prevenção. Mas é certo que eu sabia muito menos do tema (ele ainda não era tão central no Brasil) e eu incentivei a erradicação da maconha em Pernambuco. Só que, logo depois, as plantações voltavam...
JC - Alguns países como Holanda, Suíça e Portugal conseguiram implementar políticas eficientes de descriminalização de drogas. Esses países possuem, entretanto, uma condição social bastante diferente da maioria das nações da América Latina. É possível implementar políticas de descriminalização tão eficazes em nossa região quanto as que existem na Europa?
FHC - Não há receitas a serem aplicadas universalmente. Cada país (ou mesmo cada região) precisa descobrir a melhor maneira de lidar com a questão das drogas. Na Europa, a violência é incomparavelmente menor do que na América Latina, incluindo-se o Brasil. Por outro lado, a droga mais difundida lá, depois da maconha, é a heroína, que produz mais desânimo no usuário do que violência, como faz a cocaína. A pobreza entre nós é muito maior, e assim por diante. Logo, é preciso ter cautela com os exemplos.
JC - Pode-se dizer que já existem políticas eficazes de descriminalização das drogas em algum lugar da América Latina, ou os exemplos ainda são essencialmente de países mais desenvolvidos?
FHC - De descriminalização há, não diria bons exemplos, mas boas tentativas, mesmo entre nós (com as ressalvas já feitas). No México e na Argentina estão sendo dados passos nesta direção. Enquanto que, na Colômbia, há tentativas de endurecimento da lei que não punia usuários.
JC - Recentemente discutiu-se no México a necessidade de os países atuarem conjuntamente para combater o problema das drogas na América Latina. O senhor acha que isso é possível, ou as idiossincrasias não permitem esse tipo de abordagem?
FHC - Embora, como ressaltei, haja diversidade de situações, é óbvio que seria positivo discutir as políticas de drogas em conjunto, mesmo porque os países da América Latina exercem funções complementares neste comércio: uns produzem e distribuem maconha, outros cocaína; uns são mais corredores de passagem do tráfico, outros consumidores, mas, de um ou de outro modo, estão interligados.
JC - O Brasil faz fronteira com os três principais produtores de cocaína do planeta (Colômbia, Peru e Bolívia). Como o senhor avalia o trabalho de cooperação entre o Brasil e essas nações no combate ao narcotráfico?
FHC - A cooperação ainda é muito precária. Pior: a compreensão de que enquanto não se mudar o paradigma atual, de guerra às drogas, para outro, de redução do consumo e do dano causado pelas drogas nas pessoas e nas sociedades, a cooperação será mais policial e militar do que societária, e os resultados, pouco eficientes.
JC - O senhor comanda hoje a Comissão Global de Políticas sobre Drogas. Que países da América Latina estão desenvolvendo políticas realmente eficientes de combate ao consumo, produção e comercialização de entorpecentes?
FHC - No que diz respeito à repressão, a Colômbia se destaca. Mesmo lá, entretanto, apesar do esforço bélico, a oferta de cocaína permanece estável. No Brasil estamos ensaiando uma nova política no Rio de Janeiro, com a chamada "polícia pacificadora". Ela tem o mérito de liberar as populações das comunidades do jugo dos traficantes, mas não diminuem o consumo, nem acabam com o tráfico de drogas. E, como já disse acima, no geral, nada de muito proveitoso está sendo feito. Mas é inegável que a preocupação com o tema cresceu, e o debate sobre melhores políticas está aberto.