Era Sexta-Feira da Paixão. Início de uma tarde ensolarada de feriado. Dia 9 de abril de 1982, uma semana depois de a Argentina invadir as Ilhas Malvinas. O então secretário de Estado americano, Alexander Haig, mediador da guerra, aterrissa no Aeroporto Internacional dos Guararapes, no Recife, em pouso técnico para reabastecimento da aeronave. Estava cansado e, mais do que isso, preocupado. Vinha de Londres e se dirigia a Buenos Aires com uma certeza: ao contrário do que imaginava a ditadura argentina, o Reino Unido iria reagir com veemência à agressão. Na capital pernambucana, foi recebido pelo então governador Marco Maciel, a quem confidenciou detalhes sobre a delicada costura diplomática que tentava fazer para evitar o agravamento de um conflito que, sabia, seria desastroso para a Argentina. Não conseguiu.
Escolhido para negociar uma saída após as duas partes vetarem o nome do vice-presidente dos Estados Unidos, George Bush, Haig estava no Sri Lanka, acompanhado do assessor especial Vernon Walters, ex-vice-diretor da Agência Central de Inteligência (CIA) e conselheiro de presidentes, mas foi convocado a atuar na mediação da crise. A comitiva tinha mais de 50 pessoas, entre políticos, assessores, intérpretes e seguranças. Entre os presentes, o subsecretário para a América Latina, Thomas Enders; o embaixador dos EUA em Brasília, L. Anthony Motley; e o cônsul americano no Recife, Guido Fenzi. A parada técnica durou em torno de três horas.
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Em nome do governo brasileiro, Maciel recebeu Haig no aeroporto. Topou com um homem exausto após uma desgastante conversa de cinco horas, um dia antes, em Londres, com ninguém menos que a premiê britânica Margaret Thatcher. A Dama de Ferro enfrentava um momento de turbulência: suas medidas neoliberais, se por um lado reduziram a inflação e revigoraram a economia, por outro fizeram o desemprego triplicar, indo a 3 milhões. Uma vitória militar revitalizaria o governo. Por isso, Thatcher já havia adiantado a ele que seria enérgica na resposta e que só aceitaria negociar caso a Argentina retirasse antes todas as suas tropas do arquipélago.
Haig também já sabia que o presidente dos EUA, Ronaldo Reagan, ficaria do lado britânico, mesmo que o anúncio oficial de apoio ao aliado número 1 de Guerra Fria só viesse no dia 30 do mesmo mês. O secretário sabia de que era impossível não se alinhar aos britânicos, tendo em vista a parceria na cruzada por corações e mentes contra a União Soviética.
O clima na Argentina, todavia, estava longe de uma propensão ao diálogo. Até mesmo a homilia de Páscoa rezada pelo arcebispo de Buenos Aires, Juan Carlos Aramburu, exaltava, ante uma multidão, a tomada das Malvinas como um momento histórico. Além disso, o país via com olhos para lá de desconfiados a mediação americana, pelo vínculo quase que umbilical com os britânicos.
O governador de Pernambuco convidou o negociador americano para um passeio pela Veneza Brasileira enquanto a aeronave passava pelos devidos reparos. Haig aceitou. Em pleno feriadão, foram à orla de Boa Viagem, lotada de banhistas. Entre uma conversa e outra, até água de coco o secretário de Estado dos EUA tomou.
“Haig tinha ido de Washington a Londres, conversou sobre o problema com Thatcher e iria a Buenos Aires tentar um acordo com a Argentina. Recebi uma comunicação de que ele faria uma aterrissagem aqui e fui recebê-lo. Ele estava muito cansado da maratona diplomática e acabou descansando um pouco no Recife. Passeamos por Boa Viagem, perguntei se topava beber uma água de coco. Ele nunca tinha tomado, mas aceitou, foi muito educado. Acabou juntando muita gente, muitos curiosos, porque só se falava nas Malvinas”, recorda Marco Maciel. O Ministério da Aeronáutica proibira a aproximação da imprensa, mas em vão. Os jornalistas chegaram aos montes, um batalhão de repórteres, fotógrafos, cinegrafistas, e uma entrevista acabou acontecendo.
AFLIÇÃO - O ex-vice-presidente (1995-2002) lembra bem a aflição de Haig, com quem teve conversa reservada de 30 minutos. “Ele me confidenciou que Thatcher foi firme, categórica. Era a Dama de Ferro, né?”, salpica. “Haig falou que tentaria convencer os argentinos a negociar uma solução pacífica, pois era pouco lógico insistir e enfrentar uma armada muito mais bem preparada como a britânica. Evitaria danos maiores. Até porque não foi o Reino Unido quem provocou o conflito, e sim os argentinos, invadindo as Malvinas”, acrescenta. “Pela conversa que tive com ele, já imaginava o que estava por vir”, complementa.
Haig, após passear pela praia, voltou ao aeroporto, fez um lanche e decolou rumo a Buenos Aires. Não conseguiu convencer o governo argentino de Leopoldo Fortunato Galtieri a desistir da operação militar nas ilhas. Thatcher despachou 10 mil homens para o território e liquidou o inimigo. A guerra durou 74 dias. Em 14 de junho de 1982, 9.800 soldados argentinos entregam suas armas.
De acordo com o cientista político argentino Fabián Calle, professor da Faculdade de Ciências Sociais, Políticas e da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica Argentina (UCA), o triunfo militar mudou a sorte da conservadora premiê britânica, que temia ser derrotada pelos trabalhistas no ano seguinte, mas teve uma reeleição tranquila, a mais folgada em meio século. “Para a Argentina, foi um golpe final em um regime militar caótico e desordenado que já havia deixado de ser garantia de estabilidade econômica desde a crise do programa econômico de 1981”, explica.
Alexander Haig pediria demissão do governo americano ainda em 1982, alegando divergências com o presidente. À época da renúncia, Reagan comentou: “Na verdade, nosso único desentendimento era sobre quem deveria determinar nossa política externa, se era eu ou ele”.