A Guerra das Malvinas colocou o Brasil numa encruzilhada diplomática. Por um lado, o governo militar de João Baptista de Oliveira Figueiredo não cogitava se indispor com a vizinha Argentina, com quem as relações haviam se normalizado após anos de tensões. Era igualmente inconcebível, no entanto, causar qualquer mal-estar com o Reino Unido, credor brasileiro e uma das principais peças no xadrez internacional em plena Guerra Fria. A saída brasileira foi adotar uma posição de neutralidade. Imparcial, mas nem tanto: documentos, relatos e análises postos à tona 30 anos depois desvelam um favorecimento tênue à Argentina, muito pelo fato de o Brasil reconhecer, desde o período imperial, a soberania do país sobre as Malvinas, chamadas de Falklands pelos ingleses.
“O Brasil reconhece os direitos da Argentina sobre as Malvinas desde 1833, quando, informado o governo imperial pelo de Buenos Aires da ocupação das ilhas pela Inglaterra pela força, instruiu seu ministro plenipotenciário em Londres a apoiar o protesto que faria o representante argentino junto à corte de St. James. Por outro lado, o Brasil sempre propugnava a solução de conflitos por meios pacíficos, diplomáticos, e fazia votos para que, mesmo na situação presente, prevalecessem negociações políticas.” As palavras do diplomata baiano Ramiro Saraiva Guerreiro no livro Lembranças de um empregado do Itamaraty, lançado 20 anos atrás, dão o tom da postura brasileira sobre uma questão que, nos dias atuais, ainda se arrasta e ganha novos componentes.
Saraiva Guerreiro era o ministro das Relações Exteriores de Figueiredo durante a guerra e foi o artífice da “neutralidade imperfeita” praticada pelo Brasil, segundo o cientista político e historiador Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, professor titular aposentado de história da política exterior do Brasil na Universidade de Brasília (UnB), cônsul honorário do Brasil em Heidelberg, na Alemanha, e autor de mais de 20 livros, entre os quais Brasil, Argentina e Estados Unidos – da Tríplice Aliança ao Mercosul, que trata do conflito.
No último mandato de um presidente militar e em processo de redemocratização, o Brasil saboreava a harmonização das relações com a Argentina após a assinatura, em 19 de outubro de 1979, do tratado tripartite – entre os dois países e o Paraguai –, conhecido como Acordo de Aproveitamento Hidrelétrico de Itaipu e Corpus, para aproveitamento dos recursos hidráulicos no trecho do Rio Paraná desde o município de Sete Quedas (MS) até a foz do Rio da Prata. No ano seguinte, Figueiredo fez visita histórica ao ditador Jorge Rafael Videla em Buenos Aires, a primeira viagem de um presidente brasileiro à nação vizinha desde 1935. O momento pedia um alinhamento brasileiro ao pleito argentino. Peru, Bolívia e Venezuela já haviam declarado seu apoio.
Uma série de fatores, porém, impediu o alinhamento expresso de Brasília. O primeiro deles é que o Brasil, com sua tradição pacífica, não concordava com investidas armadas como forma de solucionar litígios, e foi a ditadura argentina que deu início ao conflito, ao invadir as Ilhas Malvinas em 2 de abril de 1982, esperando que o Reino Unido não se importasse com a perda de territórios remotos. O regime militar argentino estava decadente e mergulhado em problemas econômicos e sociais: a pobreza havia quintuplicado, a inflação chegava a 90% ao ano, o déficit fiscal era de mais de 20%, o PIB havia caído quase 12% e somente no mês anterior à ocupação das Malvinas houve cinco grandes manifestações contra o governo do general Leopoldo Fortunato Galtieri, todas reprimidas. Recuperar as ilhas seria uma forma de sepultar o descontentamento geral e dar sobrevida à ditadura.
A cúpula militar brasileira chegou a cogitar invocar o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), também conhecido como Tratado do Rio, firmado em 1947, e se alinhar militarmente ao país vizinho. “Mas o Itamaraty ponderou que o ataque partira da Argentina, e não do Reino Unido”, lembra Moniz Bandeira. O regime militar, então, desistiu da ideia.
O Brasil também se manteve neutro por uma questão estratégica. Afundado em uma dívida externa de US$ 70 bilhões, o País não podia arranhar suas relações com os protagonistas da economia mundial: se opor aos britânicos significaria desagradar os Estados Unidos, que em 30 de abril daquele ano anunciaram apoio ao Reino Unido, seu parceiro de Guerra Fria. O governo brasileiro já tinha aborrecido os americanos ao adotar medidas protecionistas de mercado, numa tentativa de reagir frente a crise da dívida.
“O governo brasileiro teve uma atitude ambivalente. Deu apoio à Argentina, não há dúvida alguma nisso, mas também ajudou os ingleses. Havia muita coisa em jogo de ambos os lados. O Brasil teve uma postura inteligente e pragmática, que foi bem aceita por ambos os lados e fez com que o Brasil não saísse perdendo, nem com um, nem com outro”, analisa Amado Luiz Cervo, professor de história das relações internacionais da UnB e autor do livro Relações internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas.
A declarada neutralidade, entretanto, ficou no discurso. Na prática, observou-se um posicionamento favorável à Argentina no decorrer do conflito. Um dos maiores pesquisadores sobre o assunto, Moniz Bandeira diz que a Força Aérea Brasileira (FAB) cedeu ao vizinho, “sob a forma de leasing”, dois aviões de patrulha EMB-111, da Embraer, estacionados na base aérea de Santa Catarina.
Foram pintados com as cores Argentina e pilotados por oficiais brasileiros em seus voos de rastreamento sobre o Atlântico Sul, acompanhados por oficiais argentinos, uma vez que não havia tempo suficiente para treiná-los
, relata, em entrevista por e-mail.
O treinamento, acrescenta, durava de um a dois anos.
Moniz Bandeira também cita que o Brasil vendeu obuseiros (espécie de canhão) e peças de fuzil. Ressalta ainda que, conforme o general Octávio Aguiar de Medeiros, chefe do Sistema Nacional de Informações (SNI), Figueiredo determinou ao então ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Matos, o fornecimento à Argentina de 12 a 14 caças do tipo Xavante, os primeiros fabricados pelo Brasil. “O Brasil só não forneceu foguetes do Sistema Balístico Ar-Terra (SBAT-70) de 2,75 polegadas, tanques e outros apetrechos bélicos porque o conflito logo terminou com a vitória do Reino Unido”, pontua. O governo britânico ainda pressionou o brasileiro, acusando o regime militar de vender mísseis AM39 Exocet à Argentina, o que o Brasil negou.
No dia 20 de maio de 1982, o chanceler Saraiva Guerreiro enviou telegrama secreto urgente para a embaixada brasileira em Washington, no qual justificava a posição do governo Figueiredo. “Ante um conflito tão grave, os brasileiros têm de pensar e agir segundo uma perspectiva histórica – e assim tem feito o governo – não apenas no dia de hoje ou de amanhã, mas em termos de longo prazo, em daqui a 10 ou 20 anos, no que será a região em que desejamos viver no futuro, uma região em que o Brasil e seus vizinhos tenham um relacionamento descontraído e sem ressentimentos”, escreveu.
Relato de Saraiva Guerreiro feito três anos depois, em 26 de março de 1985, e extraído do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), reforça o ziguezague diplomático do Brasil: “O desenrolar da questão criou para nós uma grande angústia, porque nós não tínhamos nenhum problema com o Reino Unido e tínhamos todos os interesses, por todos os motivos, de preservar uma relação que se tinha formado nos últimos anos com a Argentina muito especial, muito aberta. Todo aquele esforço que fora feito podia perder-se bestamente por causa de um incidente sobre o qual não podíamos ter controle”.
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