Ao falar a respeito da série que estava sendo produzida sobre a China os olhos de Letícia Lins brilharam. Descobri ali, que estava diante, como ela mesma se define, de “uma apaixonada por culturas diferentes”, tendo um especial encanto pela milenar cultura chinesa. Quando eu chegava na redação e falava com ela sobre como estava o encaminhamento de tudo, Letícia sempre tinha uma curiosidade para contar sobre os prédios, culturas, pessoas e hábitos, com uma empolgação de quem já conhece há décadas, mas que redescobre, lá no fundo da memória, algo novo sempre que toca no assunto. Assim nasceu o pedido para que ela, jornalista experiente e que hoje comanda todos os dias a coluna JC nas Ruas, contribuísse ainda mais, para que todos conhecessem aquele país pela sua sensibilidade. Segue assim, a visão dela sobre a milenar sociedade. - Marcos Oliveira -
A China pela sensibilidade de Letícia Lins
Estive na China, sem nunca ter ido lá. Explico: fui a Macau e Hong Kong, quando ambas eram colônias estrangeiras. A primeira pertencia a Portugal. A segunda, à Inglaterra. Posteriormente, na década de 1990, ambas foram reincorporadas ao território chinês. A China, como todas as culturas milenares, sempre me encantaram. Afinal, nós brasileiros, pertencemos a um novo mundo. E o nosso país completou 500 anos há apenas quinze. Isso, para a História, é quase nada. Ainda mais se for comparado com a China, que no ano 157 antes de Cristo já tinha dinastia, imperador. O primeiro grande historiador chinês, façam ideia, foi Sima Quian. Olhem só quando ele viveu:145 a.C -87 a.C. Então, dá para se ter uma ideia do que esse país representa.
Dizem os pesquisadores que sua cultura influiu tanto no Oriente, quanto Roma e Grécia no Ocidente. Suas filosofias - como o confucionismo e o taoísmo - têm princípios que são seguidos até hoje em todo o mundo, assim como parte de sua medicina, como é o caso da acupuntura. Quem não sabe, em pleno século XXI, por exemplo, o que são o yin e o yang, o I Ching e o Feng Shui? Tem tanta gente que baseia sua alimentação e a vida no primeiro, que guia o destino pelo segundo, e que decora suas casas e escritórios, seguindo as orientações de bons fluídos do terceiro.
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A China hoje chama a atenção do mundo pela sua pujança econômica. Mas também pela contradição de mostrar ao mundo um comunismo capitalista. Tem isso? Tem. Os contrastes também são visíveis, no dia a dia do país, onde há banheiros coletivos nas cidades (porque muitos chineses não os têm em casa). Há a justiça nem sempre justa, a pena de morte, a censura, a inexistência de direitos trabalhistas, o desrespeito aos direitos humanos. Tem, ainda, parte de sua agricultura nos mesmos moldes daquela praticada na idade medieval. No século passado, no entanto, a China esteve em evidência por representar um "risco vermelho" para o mundo.
Conquistada em 1949 pelo Partido Comunista, teve sua história marcada por quase três décadas por Mao Tsé-tung, que morreu em 1976. Durante longos anos, Mao era cultuado no ocidente, por jovens idealistas que também acreditavam que Che Guevara e Fidel Castro salvariam a pobreza da América Latina. Sua "revolução cultural" era exaltada por intelectuais franceses, como Paul Sartre e Simone De Beauvoir. O maoísmo começou a se disseminar, e quem não estava lá acreditava em sistema de governo justo, equitativo, com distribuição de riqueza, igualdade para todos. Vã ilusão. Liberdade não existia, foi instituída a delação até de parentes, e qualquer coisa que tivesse o cheiro do Ocidente era considerado "burguês". As pessoas passaram temiam se abraçar nas ruas, se beijar. Tudo poderia ser "burguês". Quase que deixavam de ser gente.
Somente agora, com esse esboço de abertura - porque não se pode falar em regime aberto com censura - o Ocidente está tomando conhecimento mais profundo do que foi a "revolução cultural" maoísta. Do ponto de vista humano, da dignidade de cada um. Os livros não param de surgir: As Boas Mulheres da China, Enterro Celestial, Azaléia Chinesa, Adeus China ( O último bailarino de Mao), A espera, A Imperatriz de Ferro. No primeiro, a escritora chinesa Xiran conta como as famílias foram atingidas pelo regime. Pais, mães, filhos iam para onde o comitê revolucionário determinasse. Uns eram enviados para trabalhar no campo, outros eram selecionados para balé ou teatro, outros para o Exército Vermelho. E nunca mais se viam. Xiram conta detalhes de mulheres que passaram 30 anos, em busca do marido do qual se separám antes, por interferência do governo.
Algumas, fizeram da intenção da procura um objetivo de vida. Muitas terminaram por localizar os seus antigos companheiros depois de longa busca. Não raro, já mortos. Algumas só os acharam no Tibete. No Enterro Celestial, Xiram mostra o quanto a China foi "humana" com o Tibete, como tentou destruir toda uma cultura. Azaléia é curioso. É a saga de uma camponesa, que é escolhida pela mulher de Mao para integrar o teatro nacional da China. A vida de "estrela" era um sofrimento. Adeus China mostra a dedicação de um bailarino, o último de Mao, que fugiu para os Estados Unidos. Sua vida virou filme. Tem, ainda, a espera, onde o autor descreve o contraste entre a China moderna e a antiga, provinciana. Médico, ele vai estudar na cidade grande, e morre de vergonha dos colegas, quando sua esposa (de um casamento arranjado, diga-se de passagem) vai visitá-lo. Colegas observam que ela fora vítima da cultura dos pés atados (as chinesas amarravam os pés, porque os homens não admiravam pés grandes. Por muito tempo, isso foi normal).
Mas um dos livros da atual safra pós Mao que mais chama atenção é A Imperatriz de Ferro. Concubina do Imperador de sexta escala – a última era a oitava - ela ascendeu depois de ter um filho homem. Viúva com pouco mais de 20 anos, conseguiu dividir o poder de direito com a primeira viúva. Governou a China com mão de ferro, cometeu atrocidades - como envenenar um filho adotivo, temendo que ele entregasse o país ao Japão - mas foi apontada como a primeira autoridade do país a trazer a China medieval para a China moderna. Governante absoluta de um terço da população do planeta em sua época, Cixi levou o país a conquistar todos os atributos de um estado moderno: ferrovias, eletricidade, telégrafo, acesso à medicina ocidental, arranjou meios modernos de conduzir o comércio exterior e a diplomacia.
Foi ela, também, que aboliu o famigerado costume dos pés atados. Durante seus anos de poder, ela organizou um exército popular, os boxers, para se livrar do risco de ocupações estrangeiras, inclusive do Japão. Mas, naquela época, as dificuldades de comunicação eram grandes, e os boxers ficaram sem controle, saqueando, acabando províncias. Pelo que se descreve, dá até para pensar que eles podem ter sido uma espécie de suporte histórico para aquele que seria o famoso exército vermelho depois.
LEIA O PRIMEIRO DIA COMPLETO DA SÉRIE NOVO IMPÉRIO CHINÊS NO CADERNO DE INTERNACIONAL DESTE DOMINGO(21), DO SEU JORNAL DO COMMERCIO.