Novo Império Chinês

Entrevista especial com Luís Cunha, um dos mais importantes estudiosos sobre a China

Investigador do Instituto do Oriente, ele é autor de livros como China na Grande Guerra ? À Conquista da Nova Identidade Internacional

MARCOS OLIVEIRA
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MARCOS OLIVEIRA
Publicado em 20/06/2015 às 18:04
Foto: Arquivo pessoal e BC
Investigador do Instituto do Oriente, ele é autor de livros como China na Grande Guerra ? À Conquista da Nova Identidade Internacional - FOTO: Foto: Arquivo pessoal e BC
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Investigador no Instituto do Oriente e do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade de Lisboa, Luís Cunha, português, 53 anos, é um dos mais importantes estudiosos sobre a evolução da China. Dentre os livros publicados, ele assina: “China: Cooperação e Conflito na Questão de Taiwan” (2008), “A Hora do Dragão – Política Externa da China” (2012) e mais recentemente “China na Grande Guerra – À Conquista da Nova Identidade Internacional” (2015). Este ano Cunha se prepara para lançar “China’s Techno-nationalism in the global era: Implications for the European Union”, que mostra como a China está se transformando numa potência tecnológica, originando competição com a Europa e EUA. “Trata-se de um novo jogo estratégico decisivo”, pontua ele.

 

JC- Enquanto o mundo parece ainda se recuperar da crise econômica de 2008 a China continua expandindo sua influência política e econômica. Estamos assistindo o crescimento do que virá a ser a maior potência econômica e militar no mundo?

CUNHA - Prever a China do futuro é tentar ler nas folhas de chá. Há muitas variáveis em jogo e as relações internacionais não são uma ciência exata. Julgo que nem os chineses foram capazes de prever quão rápido seria o desenvolvimento do seu país. Dito isto, os dados disponíveis apontam para um assinalável crescimento econômico da China, embora abaixo dos dois dígitos, acompanhado de um poder político e até militar de que não dispunha há apenas alguns anos. Agora a China está a transformar-se numa potência tecnológica e esse pode ser um decisivo “game changer”. A teoria da transição dos poderes diz-nos que o ponto crítico é atingido quando a potência desafiante atinge cerca de 80% do poder da potência dominante. Ora esse cenário, no confronto com os EUA, está a aproximar-se a passos largos.

Parece-me evidente que estamos a viver uma nova aceleração da História, em grande parte impulsionada pelo fenômeno da ascensão chinesa. Na sua mais recente obra, o analista americano Michael Pillsbury, considera que a China está a realizar uma maratona de 100 anos, destinada a transformar-se na maior potência mundial e possivelmente dominar o Ocidente. É uma visão algo pessimista – alguns dirão realista – para alguém que conhece como ninguém as elites chinesas. Uma coisa é certa: o fardo da História, concretamente o chamado “século de humilhações” às mãos das potências ocidentais e Japão, está inscrito no código genético deste programa de afirmação mundial da China. A catarse coletiva chinesa passa pela recuperação de um estatuto central nas relações internacionais. A China não esconde, de resto, que quer ser uma potência poderosa.

É claro que a crise econômica e financeira do Ocidente beneficiou sobremaneira a China. A China tem sabido aproveitar com inteligência todas as oportunidades estratégicas que se lhe têm apresentado. Como não trava uma guerra há mais de quatro décadas (ao contrário dos EUA), pôde concentrar todos os seus enormes recursos e uma massa crítica ímpar para o campo do desenvolvimento econômico. Por outro lado, a estratégia “going global”, apenas iniciada no início do nosso século, alcançou tremendos sucessos em diferentes latitudes. Hoje, a China marca presença em todas as grandes decisões do mundo geopolítico e geoeconômico global.

JC- O senhor afirma que o pragmatismo é o que possibilitou esse crescimento chinês. Por quê? O que mais permitiu essa ascensão?

CUNHA- A China é o Estado pragmático por excelência. Os chineses são pragmáticos por natureza, mas isso não chegaria para transformar a China numa potência mundial, se não houvesse uma visão estratégica de longo prazo. Ela ocorreu quando a elite chinesa, ideologicamente formatada e educada em Moscovo – sublinhe-se – tomou a decisão arrojada de embarcar na fase inicial da globalização econômica. 

A aposta deu enormes dividendos e hoje a China, um Estado formalmente comunista, é a campeã da globalização. Como Deng Xiaoping deixou claro, não importa se o gato é branco ou preto, desde que seja capaz de caçar o rato. O PCC é hoje uma espécie de Partido do Comércio da China. O mercantilismo chinês impera, penetrando em todos os continentes e espaços. A maioria dos países (incluindo o Brasil) tem na China o seu maior parceiro comercial. 

JC- O que externamente possibilitou a China ter o patamar que apresenta hoje?

CUNHA- Destacaria, desde logo, o apoio do Ocidente. A China atual é resultado de uma elevação política pela mão de Nixon, seguida mais tarde de um massivo investimento externo por parte dos EUA e Europa. O Japão e os chamados “tigres asiáticos” também investiram fortemente na China, mas foram as instituições financeiras dominadas pelo Ocidente que possibilitaram o crescimento sustentado da China, a globalização econômica do país e a criação de enormes reservas financeiras. Paralelamente, Deng Xiaoping teve o mérito de delinear as linhas programáticas de um Estado estratégico.

Houve depois uma conjugação de fatores propícia ao desenvolvimento da China: relativa paz nas relações internacionais, incremento das redes do comércio internacional e, não menos importante, o alegado declínio do Ocidente. Como resultado, vimos um país do terceiro mundo a investir fortemente na dívida externa americana. Assistimos agora à aquisição de ativos estratégicos europeus por parte de empresas chinesas. Um cenário impensável há apenas meia dúzia de anos.

JC-  O fato de a China ser uma ditadura, nesse momento de crise econômica e instabilidade mundial, é um facilitador para a manutenção e expansão do poder do país?

CUNHA- O poder decisório do Governo chinês depende de uma estrutura dominada por um Partido-Estado. A rapidez na implementação das medidas estratégicas superiormente concebidas é uma dessas características. Essa passagem do planejamento à ação é mais complexa nas democracias parlamentares. Veja-se, por exemplo, a dificuldade que a Administração Obama está a sentir em fazer aprovar o seu Acordo de Associação Transpacífico (TPP em inglês) no Congresso. 

Embora congregue apenas cerca de 6% da população chinesa, é o PCC que domina todos os aspetos da vida social na China. Desde que assumiu o poder que o Presidente Xi Jinping tem vindo a ensaiar medidas tendentes ao fortalecimento do PCC. A legitimidade do PCC continua a assentar no sucesso econômico da China.

JC-  A China hoje tem um forte poderio econômico e militar, mas não possui o chamado soft power forte. Os chineses ainda vão demorar a crescer também no soft power?

CUNHA- Os jogos olímpicos de Pequim foram uma enorme manifestação do soft power chinês. Todavia, do ponto de vista cultural o soft power chinês tem, efetivamente, dificuldades de afirmação. A assertividade que a China evidencia agora ao nível do hard power também não ajuda à afirmação do soft power. O relativo sucesso do Instituto Confúcio é insuficiente para afirmar a diplomacia pública chinesa, que não é comparável, por exemplo, à americana ou europeia.

JC-  A China se apresenta como comunista com práticas capitalistas. O chamado capitalismo de Estado. Essa mistura entrará em algum momento em choque?

CUNHA- Os paradoxos e contradições são parte integrante do sistema político chinês. Pode até afirmar-se que é uma característica cultural inerente à civilização chinesa, que sempre encontrou forma de harmonizar os opostos – Yin e Yang. Na realidade, o esqueleto do PCC é leninista, mas o fato exterior é o do homem de negócios. 

Até ao momento, os governantes chineses foram capazes de resolver as contradições do seu sistema político. Foi esse capitalismo de Estado que permitiu colocar em campo medidas macro-econômicas que levaram a China a recuperar rapidamente da crise que atingiu as principais economias mundiais desde 2008. Esse intervencionismo estatal seria, de resto, adotado por muitos países ocidentais. O grande desafio para o Ocidente é resistir a um modelo que soma sucessos, colocando em causa os fundamentos da democracia liberal e do capitalismo em moldes tradicionais.

JC-  Quais as maiores contradições internas da China? 

CUNHA- Destacaria as idiossincrasias resultantes de uma nação que soube internacionalizar-se e até transformar-se na campeã da globalização, mas que tende a fechar-se ciclicamente em virtude de ações que fazem lembrar as campanhas de retificação ao estilo maoista. O PCC não olha a meios para legitimar o seu poder, incluindo a censura nos meios de comunicação virtuais. Não é possível aceder ao Google ao gmail na China. A China faz parte do mundo, mas parte desse mundo não chega à China.

JC- Quais os maiores desafios da política externa da China hoje?

CUNHA- Convencer o mundo do caráter pacífico da ascensão chinesa. A China está a transformar-se numa potência pacífica, mas não pacifista, e essa é uma alteração estratégica de grandes consequências, não somente para a região onde a China se insere, mas também para o mundo. Arma os seus submarinos com ogivas nucleares multialvo, disputa ilhas com o Japão, constrói ilhas artificiais no Mar da China Meridional e aumenta o seu espaço estratégico vital. Também disporá de capacidades assinaláveis no campo da ciberguerra. 

JC-  O senhor observa que estamos caminhando para uma área de conflito no Sudeste Asiático envolvendo a China, Japão e outros países por conta de espaço territorial?

CUNHA- Regressamos ao fardo da História. A China já foi o Império do Meio com um conjunto de Estados vassalos. A estratégia militar de Pequim passa agora por transformar a China numa potência marítima. Em consequência, os países da região estão a rearmar-se fortemente. O Japão fornece navios às Filipinas e até poderá vender submarinos à Austrália. Tóquio quer ver-se livre do espartilho constitucional, preparando as suas forças armadas (até agora limitadas à auto-defesa) para todos os cenários.

A China nunca se mostrou interessada em subscrever o código de conduta proposto pela ASEAN para o Mar da China Meridional e agora, face à presumível construção de bases aero-navais avançadas naquela região, percebe-se que havia uma estratégia de projeção de poder bem delineada. A desconfiança face à China está a agravar-se na região, colocando em causa o delicado statu quo.

Por outro lado, quase todos os aliados militares dos EUA têm na China o seu maior parceiro comercial, o que gera um delicado cenário geoestratégico. Veja-se o caso da Austrália. 

 JC-  Como a América Latina e o Brasil aparecem para essa estratégia chinesa de crescimento?

CUNHA- Em primeiro lugar como região capaz de fornecer matérias-primas indispensáveis ao desenvolvimento econômico da China. A China é já o maior mercado exportador/importador para o Brasil. A estratégia chinesa passa por estabelecer parcerias econômicas privilegiadas que têm, em norma, uma forte componente política.

A China aparece, quer na Europa, quer no Brasil, como a salvadora providencial para economias em apuros. Mas é bom lembrar que não há almoços grátis. Regra geral, não se discutem os possíveis riscos do investimento chinês.

É deste modo que Pequim tece uma rede de dependências e uma preciosa rede de aliados regionais. Quando as economias dependem em grande parte da China, como é o caso dos BRICS, o espaço de manobra para o distanciamento político e a visão estratégica crítica é mínimo. Passamos da sinofobia para a sinomania.

JC-  Até quando teremos uma relação não bélica entre China e EUA?

CUNHA- A relação China-EUA vai definir o século XXI. Nessa medida, é impossível abordar o futuro da China sem enquadrarmos os EUA nesse binômio geopolítico que vai ditar o modo e o tempo como vai evoluir o nosso mundo. Xi Jinping enterrou a China “low profile”, com tudo o que isso significa. O ano de 2015 vai ficar para a História contemporânea como aquele em que a China deu o salto para uma emancipação de consequências imprevisíveis. 

Os EUA começam a ter dificuldade em acompanhar os avanços da China em diferentes frentes. O consenso de Washington foi abalado com a adesão dos principais aliados dos EUA ao novo Banco Asiático de Investimento em Infra-estruturas (AIIB na sigla original); os EUA não conseguem conter a projeção de poder de Pequim no Mar da China Meridional; a Administração Obama denota dificuldades em executar o seu plano de parceria econômica com a Ásia-Pacífico. Tudo isto num curto espaço de tempo.

O ciclo da transição geopolítica da China está a completar-se. Congelou o marxismo-leninismo em versão maoísta, adaptando o capitalismo de Estado; transitou da periferia para o centro dos centros das decisões internacionais; está a trocar o império terrestre pela projeção de poder marítimo. Chegou a hora do dragão.

 

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