“Saúde deixou de ser um direito humanitário para gerar lucro”. A afirmação é da médica sanitarista e professora de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade de Pernambuco (UPE) Bernadete Antunes, ao avaliar o cenário da saúde pública no Brasil. Atuante nas áreas de epidemiologia, sistemas de informação em saúde e atenção primária, Bernadete fala sobre os principais desafios enfrentados nos municípios.
JORNAL DO COMMERCIO – A saúde básica é um dos principais desafios do setor, de que forma o poder público poderia dar uma assistência mais eficaz?
BERNADETE ANTUNES – A questão da saúde básica é apenas o finalzinho do grande problema que vivemos na saúde pública, que é gerado em consequência da crise econômica, política e até de valores humanos que o Brasil e o mundo vivem. A atenção primária é uma porta de entrada importante, mas é preciso estar atento à grave crise sanitária que enfrentamos no País. Os Estados e os municípios fecham os olhos para essas questões. As necessidades básicas deixam de ser atendidas, como o direito à moradia, emprego, lazer e convivência social sem ódio. E tudo isso gera depressão e ansiedade. Também vemos o ressurgimento de doenças que tinham sido controladas, o sarampo, a coqueluche, tem a questão da zika que é muito grave. As salas de vacinas estão fechadas e há uma desvalorização das instituições fazendo que as pessoas não acreditem mais no Estado. São problemas que vêm da crise da austeridade que tira dinheiro das áreas sociais: saúde, Previdência e assistência social.
JC – Por que na atenção primária existem dificuldades em fixar médicos nas áreas vulneráveis? Criou-se uma expectativa muito grande com a criação dos Mais Médicos em ter assistência garantida a essas localidades mais longínquas.
BERNADETE – Porque esses lugares possuem pouco atrativo no sentido da vida que os médicos brasileiros querem ter. O Mais Médicos não foi criado só para dotar os profissionais nas unidades de saúde, essa é a menor parte do programa. A grande proposta era a formação de médicos para as reais necessidades do Brasil. Acontece que nenhum formando de medicina sai da faculdade sem emprego, quase todos têm duas, três oportunidades à espera. Ou seja, há uma pressão do mercado à espera deles, então, é muito difícil garantir uma formação humanitária quando temos essa pressão da sociedade, do mercado e o capital dominando tudo. Diferente da formação que se tem em Cuba. Lá, eles fazem convênio em vários lugares do mundo, porque possuem uma excelente formação, e quem contrata é o Estado. O que vivemos no Brasil é uma situação em que a saúde se tornou um bem do mercado e não um direito humano.
JC – Muitos gestores falam em rediscutir o financiamento do SUS. Essa seria uma saída para melhorar a relação de responsabilidades entre União, Estados e municípios?
BERNADETE –Isso depende do governo, se é mais solidário ou menos, o que torna tudo uma discussão muito política. No Rio Grande do Sul, houve um governo em que a partilha dos recursos considerava a situação sanitária das regiões e a migração populacional. Essas necessidades específicas demandam dinheiro e a organização de cuidados para saber se a atenção primária vai ter mais ou ter menos trabalho. Concretamente, se o Brasil não tiver uma reforma tributária, isso será muito difícil e vamos continuar sempre na dependência da vontade política e nem sempre essa vontade considera o indivíduo. Hoje, o que está sendo discutido no mundo é a economia centrada na pessoa, o que não vemos muito por aqui ainda.
JC – Os governadores do Nordeste lançaram um Consórcio e uma das primeiras ações será na área de saúde. De que forma essas iniciativas impactam no setor?
BERNADETE - Essa talvez seja a primeira expressão de resistência ao que está aí no desmonte do SUS, com a privatização completa da saúde. Se formos olhar a relação dos fornecedores de medicamentos, é um absurdo. Eles entram na licitação afirmando que possuem o medicamento, mas não entregam o produto. É brilhante os Estados poderem iniciar isso juntos, porque também é uma pressão diante do mercado, vão poder comprar mais barato, com mais qualidade e ter força jurídica para fechar indústrias, caso não sejam entregues. Se cria um poder de gestão forte. Podem até criar uma carreira na saúde, se quiserem.