ENTREVISTA

'Todos estão prisioneiros de uma visão antiga', diz Cristovam Buarque sobre governos pré Bolsonaro

Em livro, Cristovam Buarque analisa os erros cometidos pelos democratas progressistas em 26 anos no País

Ângela Fernanda Belfort
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Ângela Fernanda Belfort
Publicado em 26/01/2020 às 7:01
FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
Cristovam Buarque concedeu entrevista à Rádio Jornal - FOTO: FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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Os erros que resultaram nesse Brasil de hoje – e que ocorreram em 26 anos – é a essência do livro Porque Falhamos: Brasil 1992-2018, de autoria do ex-senador Cristovam Buarque. Ele foi ministro da Educação no governo do ex-presidente Lula (PT). Atualmente, critica o partido o qual pertenceu e faz uma autocrítica que inclui todos “os democratas e progressistas” à frente do governo do País entre 1992 e 2018. Ele considera que um dos maiores “pecados” dessas gestões foi “não ter conseguido frear a monótona repetição secular” da educação brasileira, até hoje de baixa qualidade. O e-book pode ser adquirido livremente pelo site da Tema Editorial e o impresso deve chegar as livrarias no final de fevereiro.

JORNAL DO COMMERCIO – No livro, o senhor diz que os progressistas quando no poder não resolveram as questões dos modelos de desenvolvimento. Por que?

  • CRISTOVAM BUARQUE – Não fizeram porque todos estão prisioneiros de uma visão antiga e não conseguem perceber essa mudança. Lá atrás Juscelino (Kubitschek) teve essa visão, mas já faz 60 anos. Hoje, o modelo tem que ser outro. E nós, além de termos muitos políticos ruins, temos poucos filósofos bons. Celso Furtado, Santiago Dantas faziam política pensando para onde iria o Brasil. Ou seja, não trouxemos uma proposta nova de rumo para o Brasil. Sinto que o Brasil precisa mais do que retomar o crescimento, precisa definir qual o crescimento, como e pra onde se desenvolver, precisa ter um rumo, diferente (do rumo) dos últimos 60 anos, quando Juscelino apostou na industrialização. E os governos que nós tivemos nenhum trouxe uma proposta nova, como incorporar a sustentabilidade no projeto de crescimento do Brasil. O governo do PT até trouxe medidas protecionistas graças, sobretudo, à Marina Silva, mas não incorporou isso como sendo o propósito do rumo do Brasil no futuro. Não mudamos o propósito do puro e simples crescimento econômico. Até hoje, o carro-chefe da industrialização continua sendo o automóvel, quando, daqui pra frente, deveriam ser os bens de alta tecnologia. O Brasil tem muitos políticos ruins, mas poucos formuladores. Faltam filósofos. Na verdade, chamo de filósofos pensadores como Celso Furtado, que trouxe uma proposta para mudar o rumo do Brasil

JC – Mas até hoje muito do que Celso Furtado propôs não saiu do papel...

CRISTOVAM – Mas muita coisa saiu. A industrialização. A ocupação do Centro-Oeste. O Brasil cresceu muito nesse período graças a Juscelino, aos militares. Nós crescemos na mesma direção e nem Celso Furtado percebeu a importância da educação. Naquela época, era difícil perceber isso. Mas a Coreia do Sul entendeu, no começo da década de 1960, e fez uma nova concepção de desenvolvimento. Não colocamos a educação como um vetor do progresso. Quer um exemplo? Em 1988, a Constituição que fizemos diz que a educação é um direito das pessoas e não um vetor de desenvolvimento. É claro que é um direito, mas é mais que um direito. Continuamos achando no Brasil que vetor do progresso é estrada, hidrelétrica, que são necessidades do progresso. O verdadeiro vetor hoje é a educação. Nos 26 anos dos governos democratas e progressistas não colocamos educação como vetor do progresso.

JC – Qual foi a mais grave de todas as falhas que os governos dos últimos 26 anos cometeram com o Brasil?

CRISTOVAM – O maior erro das forças progressistas – que se quiserem podem chamar de esquerda – foi não entender como é revolucionário fazer com que o filho do pobre estude na mesma escolha do filho do rico, como outros países fizeram. Não entendemos isso, porque continuamos prisioneiros de duas coisas. Primeiro, isso faz parte de um complexo brasileiro de que os grandes cientistas são para outros países. Segundo, a influência, que vem da escravidão, faz parecer demagogia dizer que o filho do pobre vai estudar na mesma escola do filho do rico. No Brasil, isso ainda choca como algo absurdamente impossível. É impossível dizer que isso vai ocorrer em dois, três anos, 15 anos, mas em 20, 30 anos, poderia ser feito. E nós ficamos 26 anos. Aí vem o segundo erro: nunca entendemos que éramos um bloco. Fizemos mais oposição entre nós: PT contra PSDB, PSDB contra PT do que a direita fez. A direita apoiou o governo Lula, o PSDB não. A direita apoiou o governo Fernando Henrique, o PT não. Pra ficar em dois erros, diria esses.

JC – No livro, também chamou a atenção quando o senhor diz que os progressistas não tentaram fazer as reformas para tornar o Estado mais ágil...

CRISTOVAM – Ficamos prisioneiros do estatal. Não entendemos que estatal não é sinônimo de público. Aí ficamos prisioneiros dos sindicatos. Fomos governo para o sindicato dos trabalhadores da rede pública de saúde, mas não fomos o governo dos pobres que precisam de saúde. Ficamos do lado dos trabalhadores e não do lado do povo. E a gente não percebeu. Hoje, o trabalhador tem certas qualificações que dão a ele um status diferente do povo. Nós, os democratas, inventamos a palavra povão. Os trabalhadores não são mais o povão e há contradições entre os dois. E aí não quisemos fazer as reformas, porque tocariam em interesses. Nos 26 anos, não tocamos em nenhum interesse. Não tocamos no interesse dos latifundiários, não fizemos a reforma agrária. Não tocamos no interesses do setor privado de saúde, de educação. Não tocamos nos interesses das cúpulas do serviço público, especialmente no Judiciário e no Legislativo. Não reduzimos as mordomias. Os nossos governos defenderam privilégios e isso foi cansando o povo. Até que o povo decidiu dar o troco e votou em qualquer outra coisa que não fosse esse bloco.

CRÍTICAS DE GLEISI

JC – A presidente do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann, ironizou “a autocrítica” feita no seu livro e considera abusivo o senhor dizer que “a esquerda elegeu Bolsonaro”. Ela afirmou que o senhor se “bandeou para a direita”. Como o senhor vê essas declarações?

CRISTOVAM – A esquerda foi nocauteada por nossos erros. Lamento que o PT coloca a carapuça em todos os erros. Não foi só o PT. A corrupção, não fazer as reformas, não dar valor a educação de base, foram questões que não foram só do PT. Foram de todos os partidos que estiveram no governo, especialmente o PT e o PSDB. Teve também Itamar (MDB). O PT está colocando a carapuça e, segundo, não está analisando se os erros são verdadeiros ou não. Acho um equívoco não analisar os erros. Outra coisa, o verbo bandear é relacionado a criminoso. Quando ela diz se bandear, quis dizer que quem não é do PT, é bandido. Eu não me bandeei, suponha que tenha mudado de lado, mas tudo que escrevi está lá desde a época em que eu era do PT. O PT passou a se acostumar com essa história da criminalização. Eu me nego, gosto de debater ideologias. Defendo que a economia não é mais o espaço do debate ideológico. Não existe mais economia de esquerda ou de direita. Existe economia certa ou errada. Um dos erros que cito no livro é que não entendemos que não se faz justiça social sem eficiência econômica. O papel da economia é ser eficiente e defender os direitos. Por exemplo, não se pode ter escravidão. A política define o que a gente faz com o que a economia gerou.

JC – Mas para a economia ser eficiente é necessário aumentar a produtividade...

CRISTOVAM – A produtividade só melhora com a educação, mas a esquerda brasileira não entendeu isso. Acha que educação vai melhorar porque é um direito e não uma necessidade. Esse é outro erro: a maneira como a esquerda e os democratas trataram as universidades. Eles vêem a universidade como uma escada social para os indivíduos e não como uma alavanca para o progresso do País. E aí se transformou a universidade numa fábrica de diplomas e não numa usina de conhecimento. O PT é o partido neoliberal social. Ele quer que as pessoas ascendam individualmente sem fazer nenhuma reforma estrutural.

JC – E isso é possível?

CRISTOVAM – Individualmente, para alguns, sim. Para todos, não. Por exemplo, pode se criar um incentivo para que algumas pessoas cheguem na universidade sem melhorar a educação de base. A reforma estrutural é a educação de base boa para todos. O neoliberalismo social vai garantir vagas para alguns nas universidades sem melhorar a educação de base. Então, beneficia os indivíduos, em vez da sociedade inteira. O que devíamos ter feito era o filho do pobre e o filho do rico estudarem em condições iguais para entrarem na universidade. No futebol, os filhos do pobre e do rico disputam de forma igual quem vai pra seleção. Aos 10 anos de idade, eles começam a jogar. Quem chega na seleção? Os mais talentosos. E a bola é redonda para todos. No futebol, a disputa é igual. Era isso o que deveríamos ter feito. Mas isso não ocorreu, porque era necessário ter uma escola igual pra todos, o que não aconteceu. A escola de base ser igual pra todos exige federalizar a educação e o governo Lula (PT) não quis federalizar, como eu propus, quando era ministro.

JC – E agora, qual o caminho que, na opinião do senhor, pode levar o Brasil a se desenvolver?

CRISTOVAM – Vai demorar muito, porque o vetor capaz de fazer isso é a educação, que só vai ser boa para a próxima geração. Não tem como ser um grande matemático, um grande físico, um grande pianista se chegou aos 15 anos sem ter uma boa escola. Tenho tristeza em dizer isso. Vamos precisar de 30, 40 anos para o Brasil ter uma boa educação. Também vai ter que mudar a mentalidade brasileira e talvez essa seja a maior dificuldade. Fazer com que o eleitor vote pensando em 10 anos na frente e não apenas 10 meses à frente. Pensar na próxima geração e não na próxima eleição. Quando se quer a melhor educação, vai ter que abrir mão de outros investimentos que o Brasil prefere hoje. Então, o primeiro ponto para ficar entre as maiores nações do mundo, é ter o povo entre os mais educados do mundo. O outro ponto é com relação à nossa infraestrutura, muito cara. O terceiro ponto é ter leis que fiquem, que não mudem de um dia para o outro, para as pessoas que queiram investir saberem que serão seguidas as mesmas leis por 30, 40 anos. Se a gente começar a fazer isso, chega lá. Caso contrário, vamos continuar adiando.

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