Erivaldo Cândido tem 24 anos e sai todos os dias de casa às 3h30 da madrugada para trabalhar na faxina de um enorme abatedouro de aves localizado perto da entrada de Nazaré da Mata (63 quilômetros do Recife). Só larga 12 horas depois. É pago com um salário mínimo, o mesmo disponibilizado para quem está nas pesadas linhas de corte e evisceração. Cumpre essa jornada seis vezes por semana, e quando chega em casa lava logo o uniforme que alterna com o outro disponibilizado pela empresa. Estava saindo do abatedouro, o rosto extenuado, quando foi abordado pela reportagem. “Erivaldo?” “Oi, sou eu.”
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Cabelo curtinho, óculos de armação moderna e roupa escura, em nada lembrava a baiana de colar de pérolas, chapéu, saia rodada e blusa vermelha de mangas bufantes que desfilava ano passado pelas ruas fumegantes de Nazaré. É essa mesma roupa que ele pega emprestada na sede do maracatu Leão da Boa Vista e depois veste atrás do carro do jornal para ser fotografado durante quase uma hora. Primeiro coloca a saia, que contrasta exuberantemente com o torso nu, a pele preta. Longe, um grupo de pessoas observa a partir de dentro de um canavial. Passa uma cinquentinha com dois ocupantes. Dá para ouvir o comentário: “oxe, é um homem.”
Não há como não se emocionar com a morte momentânea do faxineiro assalariado e o nascimento da baiana portentosa cuja roupa reflete o sol e ilumina a pele escura. A roupa que subverte o dia a dia de quem cumpre uma carga horária quase escrava frente ao baixo salário recebido, de alguém que foi expulso de casa quando o pai, o pedreiro José Cândido, falecido, descobriu que o filho andava se vestindo de mulher. Nesse momento de exceção, na negociação do existir típica do Carnaval, Erivaldo simplesmente abre mão do sono: passa três, quatro noites acordado, cumprindo a jornada de apresentações em várias cidades. Quando chega no barracão no qual dorme durante o período da folia, é quase hora de tomar café e se rearrumar. “Já cedo o terno tá chamando a gente pra rua.” Vai trabalhar novamente de madrugada, agora não para fazer faxina escondido sob o anonimato de uma farda que se repete entre os colegas. O seu trabalho durante a semana que está para chegar será mágico, perpassado por um estado de consciência proporcionado pela cachaça. Ela ajuda a aguentar o cansaço, o calor e mesmo a tonelada de felicidade.
Nas apresentações, Erivaldo – batizado de Sandrielly pelas amigas do trabalho - cruza várias vezes com Tarcísio Silva, 25. Dois aspectos fundamentais os unem: o trabalho no abatedouro e as roupas femininas superlativas do maracatu rural. Tatá ou Tati, como Tarcísio é conhecido, é embalador no mesmo abatedouro no qual Erivaldo trabalha. Conta que nos dias mais movimentados são abatidas até 86 mil aves. A rotina, também de 12 horas de trabalho, também de um salário mínimo, não se assemelha em nada ao papel que Tati desempenha no maracatu Estrela Dourada, cuja sede está em Buenos Aires, a 10 quilômetros de Nazaré. No Estrela, Tati foi baiana durante três anos, até que Nenem Modesto, 60, dono do brinquedo, a convidou para ser dama do paço. É um dos postos mais prestigiados do maracatu, e isso inclui uma maior dedicação principalmente durante a semana anterior de os caboclos de lança, baianas, Mateus e caboclos de pena irem para a rua.
A dama cumpre uma obrigação mais delicada, mágica: o corpo tem que estar limpo para que ela possa ter a honra de segurar a calunga. “Na boneca, está o segredo do maracatu.” Abstém-se de sexo e álcool sete dias antes do Carnaval. Passa por dois banhos, um de descarrego e outro de limpeza. No primeiro, usa arruda, pião roxo, sal grosso, alho. No segundo, alfazema, manjericão, capim santo, rosas brancas. “Não posso soltar a boneca nem quando estou tirando a roupa do desfile”, conta. A admiração pelas figuras femininas do maracatu vem desde criança, quando Tati ia ver uma tia e um tio desfilando. “Eu gostava de ver o cortejo passar, me encantava com as baianas. Queria saber o que havia naquelas saias rodadas, queria tocá-las. Aí aos 12 anos eu disse a minha mãe que ia sair de baiana. Ela ficou receosa, mas aceitou. Meu pai já tinha morrido. Ele não gostava de maracatu. Se fosse vivo, ia ser um problema”. A primeira saída foi mais difícil: Tati não sabia como seria vista e entendida pelos vizinhos. Mas vestir a roupa determinou o que ela seria no futuro que acontece agora. “Aquela roupa é uma máscara no seu corpo. Você bota, a vergonha sai. Quando eu tô de baiana, me sinto em outro lugar.” Antes do Estrela, brincou no Leão Cultural, em Nazaré. Mas diz que lá seus modos femininos causaram estranhamento. “Acharam que estava entrando muita gente como eu, como se todo mundo como eu fosse causar problema.” Há um abismo de preconceito nessa perspectiva, nessa fala naturalizada.
Dono do Estrela Dourada, Nenem Modesto, 60, diz que não vê qualquer problema na participação de gays e travestis no seu grupo. “O homem hoje é machista demais. Antes eu dançava em maracatu que não tinha nenhuma mulher. Agora, homem (hetero) nenhum quer se vestir de baiana. Acho que discriminar essa presença do gay no maracatu é uma tremenda ignorância.”
No Cambinda Brasileira, mais antigo maracatu rural de Pernambuco, a participação de gays e travestis foi proibida. Pedro Alexandre, integrante do folguedo, conta que um deles foi banido justamente da ala das baianas. A questão, de fato, passa pelo assumir a homossexualidade: no início dos anos 70, Severino Galdino da Silva, hoje com 60 anos, brincou de baiana no mesmo maracatu. Então morador do Engenho Cumbe, casado, ele conta que pediu para se vestir de mulher. “Usava uma roupa de laquê, muito pesada, um véu no rosto. Nunca ninguém disse nada, não tinha discriminação.” Como é heterossexual, não houve qualquer crítica ao seu feminino.
É um contraste imenso com o cotidiano de De Assis, como é conhecido Joaquim da Silva, 42. Ao procurá-lo pela cidade, a reportagem ouviu a palavra “viadinho” várias vezes para identificá-lo. Adepto da jurema, ele vive em uma casa muito humilde: 11 pessoas moram ali, a maioria crianças, inclusive um bebê recém-nascido. A vida dura, no entanto, não toca o coração de De Assis quando ele coloca a roupa de baiana do maracatu Estrela da Tarde, de Nazaré da Mata. “Eu sou uma condessa de campo coroado no balé”, diz ele, ao ser abordado nas ruas. “Antes de ir para a rua, a gente tem que se calçar (o mesmo que fechar, defender o corpo, se proteger). É pra gente reinar quando chegar na cidade.” Primeiro homem baiana do maracatu Estrela Dourada, Zé Preto (José Francisco da Silva), 65, brinca há 25 nos maracatus de Buenos Aires. Durante 4 anos, atuou como guarda-chuva, protegendo rei e rainha. “Aí um ano não compraram a roupa, fizeram um vestido de baiana e eu fiquei com ele. Nunca mais deixei.” Ex-trabalhador do corte da cana, o corpo forte, musculoso, Zé Preto posa tranquilamente com o longo vestido branco de veludo, repleto de brocados vermelhos e dourados, na rua onde vive. Trabalhou toda vida sob o sol, até se aposentar. O porte másculo faz um pouco usual e bonito par com a armação da saia que ele coloca antes de se vestir. Não há qualquer constrangimento em relação aos olhares dos vizinho - apenas a luz do rebatedor no momento das fotos o incomoda. “Eu nunca senti preconceito, nunca passei por isso. Sou feliz sendo uma baiana. É só isso que importa."