Entrevista/Anderson Vicente

"As mulheres eram consideradas impuras"

Doutorando realiza pesquisa sobre homens travestidos no maracatu rural

Fabiana Moraes
Cadastrado por
Fabiana Moraes
Publicado em 08/02/2015 às 8:00
NE10
Doutorando realiza pesquisa sobre homens travestidos no maracatu rural - FOTO: NE10
Leitura:

Autor do artigo Gênero e performance no Maracatu Rural Pernambucano: Um estudo da travestilidade masculina em um folguedo popular, Anderson Vicente está preparando uma tese (Pós-Graduação em Antropologia/UFPE) sobre a presença de homens no mais famoso brinquedo do Carnaval pernambucano. Estuda justamente os maracatus de Nazaré da Mata, berço da manifestação no Estado. Modernidade, preconceito e resistência são alguns dos tópicos relacionados ao fenômeno.

JORNAL DO COMMERCIO – Vi fotografias dos anos 40 nas quais surgiam vários homens vestidos de baianas do maracatu. Segundo os integrantes no Cambinda Brasileira, as baianas masculinas de antigamente eram “homens de verdade”, heterossexuais, casados. Hoje, segundo eles, nenhum homem heterossexual se vestiria de baiana. Significa dizer que já fomos mais liberais em relação a essa presença masculina nas roupas femininas do maracatu?

ANDERSON VICENTE - Bem... no início o maracatu rural era uma brincadeira de homens simples da zona canavieira, que durante o carnaval se divertiam formando grupos de baque solto organizados em vários “cordões” com personagens específicos, entre eles merece destaque o das baianas, que tradicionalmente eram homens que se vestiam de mulher, mas que não demonstravam traços de uma feminilidade socialmente construída que identificasse atributos associados a posição das mulheres, ou seja, o homens se travestia de mulher e mantinha uma postura comportamental masculina. Roberto Benjamim, afirma em seus trabalhos que as baianas do maracatu rural eram performatizadas por homens “cabra-machos”, que não tinha nenhuma característica feminina. O mundo relacional e simbólico criado pelos homens que brincavam nos grupos de maracatu rural sempre foi marcado por discórdias, brigas e que passou a ser a principal justificativa da exclusão das mulheres do folguedo. Todavia, no momento que as mulheres são incluídas no maracatu rural, o cordão das baianas é destinado a elas e esse fato marca decisivamente a saída dos homens travestidos de baianas durante a apresentação de maracatu rural. É a partir desse contexto que os homens, na figura dos caboclos de lança, passam a proteger as mulheres que constituíam a arrumação do cortejo. Sendo assim, não percebo um retrocesso em relação a presença masculina travestida no maracatu, mas acredito que houve uma reconfiguração do cordão das baianas e isso permitiu uma construção simbólica com base em relações de gênero que posicionam os atores sociais de acordo com os atributos dados ao lugar em que circulam dentro do folguedo. É a partir da compreensão dos diferentes atributos de gênero e sexualidade que encontramos dentro do maracatu rural personagens permitidos a homens travestidos ou não. Neste contexto, não podemos interpretar que a saída dos homens travestidos ou a sua não aceitação nos grupos de maracatu represente uma ausência de modernidade e sim como uma maneira de reordenar as relações com base na construções que as posições do gênero e da sexualidade nos permitem enquanto membros de um grupo social específico e no caso do maracatu rural essas novas maneiras de organizar as posições de homens e mulheres são dadas pela própria maneira como os membros do folguedo se relacionam com essas práticas.

JC - Alguns maracatus não aceitam homens vestidos de baiana pelo fato de os mesmos serem gays ou travestis – o Cambinda expulsou uma pessoa, inclusive. Isso não vai contra uma tradição – ou a sexualidade dá o passe para isso acontecer?

ANDERSON - Há grupos de maracatu rural que não aceitam a inclusão de gays e travestis justamente por ir de encontro a tradição que se manteve a partir do momento em que as mulheres são incluídas no folguedo. A partir do momento que se manteve a obrigatoriedade da presença de mulheres que alguns grupos proibiram a presença de homens travestidos com o receio de ser visto como um transgressor da “nova” (se podemos chamar dessa forma) tradicionalidade imposta aos grupos que quisessem participar dos grandes eventos promovidos pelas organizações carnavalescas do Recife. Percebo que houve uma inversão ou, como chamei anteriormente, uma reordenação da tradicionalidade, que aceitava o homem travestido. Alguns grupos que mantêm essa compreensão de que o cordão das baianas deve ser constituído apenas por mulheres, interpretam a homossexualidade e a travestilidade como atributos de um não-feminino. É como se a feminilidade não estivesse presente nesses atores e a inclusão desses no cordão das baianas descaracterizaria o “cordão” e consequentemente o grupo, deixando-os em desvantagem com relação à apresentação do grupo. A homossexualidade e a travestilidade ainda são questões novas nos estudos de cultura popular e, por isso, são vistas por alguns grupos como uma dimensão da sexualidade que foge as normas e manutenção das estruturas sociais.

JC - Em que momento os homens heterossexuais deixaram de representar papeis femininos no maracatu e quando se deu a entrada dos homossexuais (declarados) nesse espaço?

ANDERSON – Com a migração dos moradores das zonas canavieiras para a região metropolitana do Recife veio junto a brincadeira do maracatu rural e, posteriormente, esses grupos reivindicaram a sua participação nos eventos oficiais do carnaval organizados pelas Associações Carnavalescas do Recife. Todavia, uma das exigências dessas associações foi a adequação dos grupos de maracatus rurais a certa padronização em relação à constituição do cortejo, que deveria se aproximar da estrutura já estabelecida pelos grupos de maracatu nação existentes no Recife. Um exemplo dessa adequação foi o cordão das baianas, que no maracatu nação era constituído exclusivamente por mulheres. Então, os grupos de maracatu rural que se propusessem a participar dos eventos carnavalescos deveriam retirar os homens travestidos desse cordão e incluir mulheres. Isto vai acontecer entre as décadas de 1940 (década da foto acima) e 1950. Não podemos precisar em que momento isso ocorre, mas podemos estabelecer alguns fatores que nos leva a compreender melhor a aceitação e até a preferência de homossexuais no cordão das baianas. Escutando os mestres de maracatus rurais de Nazaré da Mata ouvi muitas histórias que contam que ao longo dos anos as mulheres se desinteressam pela brincadeira do maracatu ou os pais e/ou maridos as proibiam de brincarem nos grupos com a justificativa ainda presente no imaginário da população de que o maracatu era um folguedo violento e que não representava um local para mulheres. Dessa forma, a ausência cada vez maior obrigaram alguns grupos aceitarem a presença de travestis e/ou homossexuais no cordão das baianas, invertendo (ou retornando) as origens do maracatu rural. Outro fator que marca a entrada de homossexuais no maracatu rural é uma lógica simbólica explicada pela impureza feminina. Explicando melhor: a mulher (e aqui estou me referindo ao feminino) para alguns brincantes do maracatu é caracterizada como alguém que possui momentos de impureza espiritual materializada nos períodos de menstruação. Isto permitiu a inclusão dos homossexuais, pois em primeiro lugar, esses não possuem a menstruação como elemento de impureza e, em segundo lugar, esses muitas vezes são intermediários entre o grupo e os rituais religiosos que protegeram o cortejo durante o Carnaval. Ou seja, alguns homossexuais são praticantes de rituais afro-brasileiros como o candomblé,jurema e catimbó e utilizam esses rituais para proteger o grupo espiritualmente de energias negativas que possam provocar alguma interferência na harmonia do grup

Últimas notícias