Campos e o futuro de uma cidade colocado à prova sem testes

Vinte anos atrás, um popular comercial colocou um bordão na boca dos brasileiros: "La garantía soy yo". Traduzido, significa "a garantia sou eu".

Publicado em 19/07/2024 às 20:00

Cerca de 20 anos atrás, um popular comercial de videocassete colocou um bordão na boca dos brasileiros: “La garantía soy yo”. Traduzido do espanhol, significa “a garantia sou eu”. Tratava-se de um alerta para quem comprava produtos dos quais não se sabia a procedência. O comercial orientava a adquirir aparelhos com a garantia da empresa, óbvio.

Virou uma frase usada para tudo o que não se conhecia a origem, mesmo que no fim a qualidade do objeto fosse comprovada.

O que aconteceu esta semana após a confirmação do vice de João Campos (PSB) no Recife foi algo que se encaixa nisso.

“Soy yo”

O prefeito e pré-candidato à reeleição disse aos recifenses, aos aliados políticos e aos colegas de partido que com 75% das intenções de voto ninguém é mais importante para tomar decisões sobre a candidatura e a condução no Recife do que ele próprio, sozinho, e fim de conversa.

O recado não precisou ser verbalizado, mas fica bem entendido quando ele anuncia um vice que nunca foi nem mesmo secretário, que os partidos aliados não tiveram o direito de discutir e que os recifenses não têm ideia de quem é.

Do PCdoB?

Aos que quiserem saber quem é Victor Marques, uma reportagem neste JC explica os detalhes. Mas o fato é que ele não é conhecido nem pelo próprio partido, o PCdoB, no qual Campos o filiou para disputar a eleição, dentro de uma estratégia que tentava amenizar o impacto com o PT.

A ideia era alegar que o PCdoB faz parte da mesma federação em que estão os petistas. Não colou, lógico. Isso importa? Nem um pouco quando você aparece com 75% nas pesquisas.

A garantia é João Campos e isso basta para a equipe do prefeito.

Pode ser o prefeito

O maior questionamento, no entanto, tem como origem o recifense. O motivo para Campos não aceitar nenhuma sugestão sobre o vice e escolher alguém que é um tipo de “amigo-irmão”, companheiro de muitos anos em toda a vida pública e cuja fidelidade está acima de qualquer desconfiança (ao menos esta é a ideia), é que o prefeito parte para a reeleição já com a ideia de não ficar na prefeitura.

Ele quase não esconde mais que pretende disputar o governo em 2026 e o vice desta campanha será prefeito do Recife por ao menos dois anos e oito meses.

Experiência

Caso vença em 2024 e seja reeleito prefeito, João Campos decidiu já esta semana quem será o gestor da cidade pela maior parte do seu mandato: Victor Marques.

Quais as propostas de Victor Marques, quais os planos dele e que visão ele tem sobre o Recife? A falta de experiência, por ter sido sempre um auxiliar do atual prefeito e nunca ter ocupado nem mesmo um posto de secretário, não preocupa?

A isso, Campos responde com: “a garantia sou eu”. E está encerrado o assunto.

Dentro e fora

É preciso dizer que nada impede o futuro candidato a vice de ser um ótimo gestor. Também se pode argumentar que o chefe de gabinete tem o importante status de secretário. É verdade.

Mas como chefe de gabinete, cargo que ocupava até se desincompatibilizar, Marques tinha uma responsabilidade “para dentro”, com a gestão, e não com o público, com os cidadãos.

Todos esses questionamentos podem parecer excessivos em se tratando de um vice, pode parecer chateação, mas a população precisa saber que ao votar em Campos estará escolhendo o vice como prefeito pela maior parte do mandato. O eleitor tem o direito de saber isso.

Eduardo

Eduardo Campos, em 2013, foi avaliado como o melhor governador do país. Alcançou 53% de “ótimo e bom”. Sua maneira de governar era bem avaliada por 76% dos pernambucanos.

Os números eram tão graúdos que o alçaram à oportunidade de deixar o governo antes para disputar a presidência. Já pensando nisso, soube fazer acordos com aliados desde a reeleição. Manteve o vice, João Lyra Neto, na época pelo PDT, não porque ele era um amigo pessoal, mas porque havia uma aliança para se fortalecer no Agreste do estado. Não foi vontade privada, mas necessidade de grupo.

Sucessão planejada

Depois, quando foi escolher um sucessor, Eduardo decidiu por alguém de sua própria cozinha, é verdade, mas antes o fez enfrentar a dureza de três secretarias diferentes: Administração, Turismo e Fazenda. É lógico que a morte precoce do ex-governador num acidente aéreo temperou com imprevisibilidade a História pernambucana por um longo período, mas ninguém pode negar que Paulo Câmara foi bem preparado.

Eduardo fez questão de colocá-lo à prova antes de apresentá-lo ao povo e aos aliados como sucessor.

Mar revolto

Um socialista com longa história no partido, em conversa com este colunista, menciona um fato interessante e que merece reflexão. Ele lembra que João Campos não conhece o mar revolto como homem público.

“João nunca perdeu. Foi candidato a deputado, e o mais votado, no recall do pai. Foi candidato a prefeito e terminou vitorioso. Nunca enfrentou uma grande crise porque não tem adversários no município. Como o barco dele nunca balançou, acredita que não precisa combinar nada com ninguém e assume os riscos sozinho”, diz.

Zelo

A referência tem uma comparação com Eduardo Campos, que enfrentou crises imensas na carreira quando perdeu eleição para a prefeitura do Recife e, principalmente, na época do escândalo dos precatórios. Tudo antes de ser governador.

“Eduardo conhecia a calmaria, mas também sabia que tempestades acontecem quando menos se espera. Por isso era mais cuidadoso, sabia fechar alianças com muita atenção e zelo para o caso de precisar se apoiar em algum aliado no futuro”, completa esse socialista.

João Paulo

Não custa lembrar de João Paulo (PT) também. Quando foi prefeito do Recife, o petista terminou o mandato com aprovação altíssima, acima de 70% em algumas pesquisas. Ele tinha poderes políticos para eleger o sucessor que bem entendesse, alguém cuja fidelidade estivesse a toda prova e que ninguém conhecesse, mas optou pelo seu então secretário de Planejamento Participativo, João da Costa (PT), que já estava sendo testado desde os primeiros anos de gestão na organização do setor que era o mais importante da prefeitura na época e lidava diretamente com as necessidades do município.

Atenção

São só dois exemplos. Acontece que não há, na história recente de Pernambuco e do Recife, situações em que o gestor “escolhe” seu “sucessor” com tanta antecedência e sem nenhuma demonstração pública de que ele foi testado em funções administrativas voltadas para a cidade que pode vir a governar. Sem ter sido testado no contato direto com os problemas da cidade.

É algo estranho e merece bastante atenção.

Tags

Autor