A formiga e a cigarra no ambiente do Supremo Tribunal Federal

Existe alguma confusão entre público e privado quando ministros do STF participam de eventos patrocinados por empresas envolvidas em ações no STF?

Publicado em 14/10/2024 às 20:00

Dizem que a formiga trabalhava sem parar naquele verão, olhar fixo nos objetivos traçados, carregando até vinte vezes o peso de seu corpo em folhagens que eram acumuladas para os momentos mais difíceis. No mesmo período, a cigarra cantava, marcando o ritmo daquela floresta, aproveitando a vida enquanto nenhuma crise alimentícia se avizinhava. Bastava esticar as patinhas e alcançava a folha que quisesse para um banquete oferecido pela natureza.

Estúpida era a formiga, pensavam muitos, alheia aos prazeres do momento, preocupada em acumular o que estava na terra em abundância.

Até que chegou o inverno, a natureza murchou e secou, garantindo a sobrevivência apenas daqueles que tinham trabalhado durante o verão para formar um estoque de alimento. No fim, a cigarra precisou pedir ajuda à formiga e teve que ouvir: “Enquanto eu trabalhava, você cantava. Agora dance”.

Esopo em Brasília

Adaptando a fábula de Esopo para as instituições públicas e privadas, poderíamos dizer que estas se alimentam e sobrevivem não de folhagens, mas de um material raro e que precisa ser acumulado ao longo do tempo. Estamos falando de credibilidade.

Na floresta das instituições, existem as cigarras, que cantam alegremente durante os momentos de opulência oferecidos aos seus cargos. E existem as formigas, que trabalham com olhar fixo no futuro, planejando suprimentos para quando o inverno chegar.

Alguns se preservam para acumular credibilidade. Outros não.

Credibilidade

Crises vão e vêm constantemente, atacando com violência órgãos que são a base da democracia em países como o Brasil. A única forma de as instituições sobreviverem é tendo acumulado credibilidade ao longo dos anos.

O que muitos ministros do Supremo Tribunal Federal estão confundindo nos últimos anos é que mover-se de acordo com a onda, como tem acontecido com frequência, é atitude de cigarra e não de formiga. Não se acumula credibilidade mudando de ideia ao sabor do vento político.

Instituições permanentes vivem. Sobreviver é para os que são transitórios, os políticos, os assessores, os lobistas. Quando integrantes da Suprema Corte se comportam como se dependessem de opinião pública ou de sustentação política, estão se perdendo.

Uma instituição que tem todos os argumentos para prender e prende, não pode ser a mesma instituição que, mudando a conjuntura política, desenterra todos os argumentos para soltar e solta. Ainda mais uma corte que tem como primeiro nome um adjetivo como “supremo”.

O patrimonialismo…

Uma instituição como o Supremo Tribunal Federal, que no Brasil assumiu posição de corte geral de tudo, envolvendo-se em assuntos que vão de atracação de navios a partos de raposa, não pode ter seus ministros viajando para participar de eventos na Europa patrocinados por empresas que no presente ou no futuro, cedo ou tarde, terão que julgar. Isso é atitude de cigarra.

E esta cigarra canta muito e canta com uma segurança impressionante sobre a ausência de consequências. Canta como se o inverno não fosse chegar nunca.

O presidente da corte, Luís Roberto Barroso, declarou esta semana que existe um “preconceito contra a iniciativa privada” quando a presença de magistrados nesses eventos é questionada.

…são os outros

Mas, na mesma fala, Barroso citou as práticas não republicanas e disse a origem: “há patrimonialismo, quando não corrupção, que é essa má-divisão entre o espaço público e o espaço privado”.

Segundo ele, há “uma apropriação do espaço público por elites predatórias”. Traduzindo, o próprio ministro admite que há corrupção (ou patrimonialismo) quando os limites entre público e privado são confundidos.

Existe alguma confusão entre público e privado quando ministros do Supremo participam de eventos patrocinados por empresas envolvidas em ações no próprio Supremo?

É uma pergunta sincera, sem armadilhas.

Patrocínio

Senhoras e senhores, Barroso fez esse discurso em Roma, durante participação no II Fórum Esfera Internacional, evento promovido pelo grupo Esfera Brasil na Itália. Sabe quem é um dos principais patrocinadores desse evento? A JBS, dos irmãos Wesley e Joesley Batista.

Se há algo que a JBS possui são citações em processos que dependem de julgamento no Supremo. É a mesma JBS que, nos últimos tempos, teve uma multa de R$ 10 bilhões suspensa pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal.

Adivinhe quem está na lista de participantes do evento, em Roma? Exatamente Dias Toffoli.

Ruim de…

Agora, outra questão que é formulada imediatamente quando se escuta falar nesses eventos privados com participação de representantes de instituições públicas: quem paga a conta deles? Uma passagem do Brasil para Roma, ida e volta, custa alguns milhares de reais. Tem o custo de hospedagem, com mais alguns milhares de reais. Alimentação em bons restaurantes também não é algo barato, ainda mais com o Euro custando mais de R$ 6,00.

Imediatamente, nesses casos, o STF corre para informar que não está custeando as despesas.

Tudo bem. Então são os patrocinadores que pagam pelo transporte, pelos travesseiros de hotel e pela alimentação?

…qualquer jeito

Honestamente, é difícil avaliar qual a pior situação. Porque se o STF estivesse pagando passagem, hospedagem e alimentação aos ministros para que eles participassem de um evento privado isso seria um escândalo.

Mas se o evento for o responsável pelos custos, sabendo que é patrocinado por empresas envolvidas em ações que dependem de julgamento desses juízes, em que isso reduz o absurdo de uma relação questionável entre o público e o privado?

Ainda é verão

Por enquanto, as relações institucionais estão sob controle e os ministros do STF têm agido como se isso fosse algo permanente. É como se o verão pudesse durar para sempre e eles pudessem continuar cantando e vivendo do presente, achando estúpidas as formigas preocupadas em preservar seu estoque de credibilidade.

Há um grupo de parlamentares que tenta aprovar medidas restringindo o poder do Supremo, é verdade. Mas não se trata de uma ameaça real, porque há interesse dos políticos em gritar mais do que agir.

Os bolsonaristas fazem barulho com ações contra os ministros do STF porque isso dá votos dentro das bolhas deles, mas não pretendem ir muito adiante.

A não ser, é claro, que precisem sobreviver. Porque é da natureza dos ocupantes transitórios de cargos públicos, os políticos dependentes de voto, fazerem qualquer coisa para sobreviver de acordo com a onda do momento.

É aí que está o risco para os ministros do Supremo e é quando o inverno chega.

Na crise

Políticos fazem todo o tipo de acordo que puderem fazer para que suas vidas sigam tranquilas, mas nos momentos de maior crise, são capazes de qualquer coisa.

No governo Dilma Rousseff (PT), quando a insatisfação de um crescente número de pessoas tomou conta das ruas, o Congresso correu para apontar culpados e decidiu conduzir o país. Quem, na época, estava em baixa de credibilidade por causa de escândalos de corrupção e patrimonialismo era o Partido dos Trabalhadores e seus integrantes, além de aliados mais próximos.

Nesse cenário, sem surpresa, uma presidente foi impedida e o antecessor dela foi preso. Vários atores públicos foram entregues às chamas sem dó.

Dance

Na crise, ou no inverno, os primeiros a serem jogados ao fogo são os que não se preocuparam em acumular credibilidade quando o momento era mais propício. Estes ficam sem defesa.

Quando você acredita ter tanto poder que pode apontar o dedo para os outros sem enxergar sua própria condição e suas atitudes, corre o sério risco de encontrar-se com a própria tragédia no primeiro momento de maior dificuldade.

E aí, a formiga acabará tendo que dizer aos magistrados: “vocês cantaram, agora dancem”.

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