O complexo de Poder Moderador brasileiro e suas consequências - Parte 1
Quem comanda informalmente o "Poder Moderador" no Brasil hoje? Estamos, neste exato momento, dentro de um impasse que pode evoluir para uma crise.
O brasileiro ainda é muito ligado às noções de poder construídas culturalmente pelo absolutismo monárquico, do império que já existiu aqui. Mesmo que não se fale diretamente sobre isso. A República existe há apenas 135 anos e as referências populares à monarquia ainda estão no cotidiano.
Pense em quantos comércios você conheceu que possuíam nomes do tipo “Império de…” ou “O Rei do..”. Ainda hoje, em matérias jornalísticas, há expressões do tipo: “Fulano é o rei de…”. Faz parte do ambiente cultural e é um termo utilizado para designar uma autoridade quase suprema. Normalmente é só para vender um produto, mas está lá como acessório persuasivo de referência.
Vamos falar a verdade: a República nunca foi um anseio popular, mas de um grupo político e militar de algumas décadas atrás. É difícil tratar desse assunto ainda. É como o sujeito que teme ir ao analista para não ser obrigado a lidar com uma decisão que tomou em seu passado, mas não tem como voltar atrás. Um dia ainda precisaremos lidar melhor com essa situação enquanto nação.
Por enquanto, há sintomas que precisam ser diagnosticados e tratados quando estamos em crises institucionais. Precisamos falar sobre o “complexo de Poder Moderador” das nossas instituições. Ele existe e não é fácil de curar.
O Moderador
O Poder Moderador estava previsto na Constituição de 1824, editada pelo Imperador Dom Pedro I.
Ao analisar a História brasileira pela ótica política, temos a tendência de menosprezar o primeiro texto constitucional em vigor aqui após a independência. É um erro, porque foi a carta mais longeva que tivemos, em vigor por 65 anos. Se tivemos 202 anos desde a Independência, a Constituição do primeiro Dom Pedro cobriu um tempo que é quase o dobro da Constituição atual, a cidadã.
É verdade que a participação popular e o entendimento do texto atual são imensamente maiores do que na época em que grande parte da população era analfabeta. A influência da Constituição de 1988 acaba sendo ampliada por conta disso.
Mas quando a análise recai sobre os detentores de poder e representantes daquela época e dessa, todos alfabetizados, a influência cultural do documento de 1824 ainda pode ser observada.
O Poder Moderador, é um exemplo disso. Informalmente ele nunca deixou de existir.
O texto
No art. 10 do “Título 3º”, a Constituição de 1824 dividia o governo em quatro partes, ao invés das três atuais: “Os Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial”.
Pouco depois, no “Título 5º”, o texto constitucional explica o funcionamento do Poder Moderador. O art. 98 da carta de 1824 é o sonho de todo político até hoje: “O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos”.
E essa nem é a parte mais substancial da autoridade do chefe do Poder Moderador. Esta vem logo a seguir, no art.99: “A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”.
Início
Está aí, sob a grafia da época. Perceba que a gênese da formação política brasileira, com a disposição de cargos que existem até hoje, com senadores, deputados e ministros da Suprema Corte, foi a Constituição de 1824.
Está no DNA da origem e do equilíbrio desses poderes e cargos a existência de uma força maior, “inviolável e sagrada”, blindada contra “qualquer responsabilidade”, que era o Poder Moderador.
Aí veio a República, sem levante popular, sem ruptura cultural ampla, suprimindo oficialmente o Poder Moderador daquele sistema.
Ao longo das décadas seguintes, salvo em ditaduras das quais ainda falaremos, tivemos sempre três poderes: O Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
Sem vácuo
Em política é costume lembrar que não existe vácuo. Alguém ou alguma coisa sempre ocupa o espaço antes preenchido. Agora você pode tirar alguns minutos para fazer um exercício, como se fosse um jogo de adivinhação, e tentar encontrar o “Poder Moderador” disfarçado em cada época da História brasileira desde então.
Sim, ele sempre esteve lá, só não era chamado por este nome. Foi retirado do texto constitucional mas seguiu sendo representado por aqueles que, a pretexto de garantir a ordem, almejavam as benesses imperiais de inviolabilidade e ausência de responsabilidade.
Diversos
Em diversos momentos foram os militares, em outros foram grupos legislativos específicos, houve período em que esse Poder Moderador eram produtores rurais de estados mais abastados.
Nas décadas mais atuais o Poder Executivo, na figura do presidente, tinha essa força.
Hoje, se você pensar bem, vai perceber que o Poder Moderador no Brasil é disputado entre o STF e o Congresso Nacional. E, não por acaso, esses dois poderes andam em conflito frequente, medindo forças um contra o outro.
Ditaduras
E o que são os períodos ditatoriais que o Brasil precisou enfrentar, dentro desse contexto?
O país passou por dois períodos em que as liberdades civis foram cerceadas, o Congresso foi fechado e cidadãos foram perseguidos e torturados. O primeiro foi o Estado Novo, de 1937 a 1945. Depois veio o Regime Militar, de 1964 a 1985.
É claro que apenas muitos fatores em conjunto podem produzir um grande desastre, então não houve uma única causa. Mas algo sempre preponderante nos dois episódios foi a crise do grupo que atuava como “Poder Moderador” em cada época.
Crises
Em 1937, a “República do Café com Leite”, que alternava presidentes, enfraqueceu e perdeu vigor. Os militares então assumiram com Getúlio Vargas.
Depois, no retorno à democracia, a figura mais forte para atuar como Poder Moderador passou a ser o presidente da República. Isso ocorreu quando Getúlio (ele outra vez) foi eleito pelo voto popular no início dos anos 1950. Juscelino Kubitschek também foi um presidente forte.
Mas logo em seguida as crises envolvendo Jânio Quadros, Ranieri Mazzilli e João Goulart enfraqueceram a instituição da Presidência até 1964, e foi quando os militares assumiram outra vez.
Sempre lá
O Poder Moderador continuou existindo no ambiente político brasileiro mesmo com a Constituição de 1824 deixando de ter validade e sendo substituída por outras, mesmo não estando em nenhuma outra lei.
E as rupturas democráticas de todo o período republicano brasileiro aconteceram exatamente quando os que controlavam informalmente esse “Cetro Imperial” entravam em crise e perdiam poder.
E hoje?
Surge então uma questão: quem comanda informalmente o "Poder Moderador" no Brasil hoje? Estamos, neste exato momento da História, dentro de um impasse que pode evoluir para uma crise e isso, como observamos na História, sempre preocupa.
Mas para não alongar ainda mais o texto, a continuação do tema virá na edição deste domingo, aqui neste mesmo espaço da coluna Cena política, dentro do Jornal do Commercio. Até lá.