A Lei 10.639/03, que torna o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, e que também instituiu o Dia Nacional da Nacional da Consciência Negra, celebrado nesta segunda-feira (20), mesmo tendo sido promulgada há 20 anos, ainda encontra desafios para sua implementação na grade curricular da Educação Básica.
Coordenadora Pedagógica da Escola de Arte João Pernambuco e Coordenadora Executiva do Laboratório de Educação das Relações Étnico raciais-Laberer/UFPE, Elizama Messias, faz referência a citação da escritora e filosofa estadunidente Angelas Davis: “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”.
Diante disso, ela defende que aplicar as relações étnicos raciais nas escolas é um trabalho contínuo e sistemático, e que o dia 20 de novembro deve ser a culminânicia do que foi desenvolvido ao longo de todo o ano na escola "e não o único momento para trabalhar a temática".
“É preciso no primeiro momento fazer valer a Lei 10.639/03 e todos os outros documentos que vieram depois, que colocam diretrizes e orientações para gestores escolares, para conselheiros de educação, para gestores das pastas de educação nos níveis estadual e municipal”, afirmou Elizama Messias, que também é produtora cultural, especialista em museus, comunidades e identidades, em entrevista ao JC.
Fazer cumprir essas diretrizes passa pela formação continuada dos professores, gestores, coordenadores pedagógicos e todos que fazem parte da escola e são responsáveis também por ações de ensino e aprendizagem dentro das relações etnico-raciais. Outro ponto destacado pela professora e coordenadora do Laberer/UFPE é com relação aos investimentos em materiais didáticos.
“Nós temos uma quantidade grande de material hoje, em relação ao passado, mas eles precisam circular, serem usados em momentos de discussão e planejamento, de maneira coletiva entre os professores”, destaca Elizama.
Toda comunidade precisa ter participação nesse processo
O combate ao racismo e a contribuição da implementação da educação das relações étnico-raciais nas escolas também é uma tarefa de toda comunidade (escolar e sociedade), independente do seu pertencimento étnico-racial.
"Trabalhar as questões da identidade negra, num país de maioria negra, em escolas públicas, da sua grande maioria negra, traz repercussão para vida acadêmica daquela pessoa como um todo. Ela começa a se ver de outra forma e em espaços que comumente não são propagados como destinados a ela", destacou a professora.
Trazer o ensino de história africana e afro-brasileira para dentro das salas de aula é também garantir o direito de aprende que fora negado por muitos anos.
"Estamos falando do direito a aprender sobre nossa história. Por que vamos estudar a maior parte do currículo sobre a Europa e tão pouco sobre a África? No final das contas, estamos falando de algo que nos foi negado, que é o direito de saber sobre a nossa história, um conhecimento que não seja atravessado pelo racismo científico e pelo mito da democracia racial", disse Elizama.
Pesquisa mostra recorte regional sobre a implementação Lei 10.639/03 nos municípios
No Nordeste, sete em cada dez secretarias municiais de Educação realizam poucas ou nenhuma ação para cumprir a Lei 10.639/03. Esses dados foram obtidos por meio de uma análise regional, realizada por Geledés Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana. A pesquisa foi feita com 1.187 secretarias municipais de educação em todo o Brasil, o que corresponde a 21% das cidades brasileiras.
O levantamento também mostra que a maioria das ações realizadas por secretarias desses estados para apoiar as escolas no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira são orientações sobre medidas a serem tomadas em casos de racismo e oferecimento de apoio para a realização de atividades culturais e oficinas.
A percepção dos municípios respondentes sobre os desafios para a implementação da lei é a de que há ausência de apoio de governos, organizações e empresas, além da dificuldade dos gestores e profissionais em transpor o que está previsto nos currículos para os projetos das escolas.
Outro desafio identificado na região está no alocamento de recursos específicos para o cumprimento da lei. Ainda que cerca de 40% do território nacional realize investimentos e disponibilize recursos financeiros, apenas 8% das secretarias do Brasil e 6% do Nordeste possuem orçamento específico para implementá-la.
"A Lei 10.639/03 é a principal ferramenta para combater o racismo estrutural na sociedade brasileira e para construir uma perspectiva positiva sobre as contribuições da população africana e afro-brasileira na nossa história e cultura, o que contribui para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária”, comenta Beatriz Benedito, analista de políticas públicas do Instituto Alana.
“Nesse sentido, governos, sociedade e escolas devem unir esforços para realizar ações de fortalecimento da administração pública, com o uso de indicadores de raça e cor para formulação e monitoramento de políticas educacionais, como também para a formação de professores e a escolha de materiais didáticos adequados. É um processo complexo e que demanda tempo e esforço imediato desses diferentes atores”
Participação dos municípios por estado
O Nordeste foi a região do país que mais respondeu ao estudo: 491 secretarias. Alagoas, foi o estado com maior participação, registrando 71% de adesão à pesquisa, seguido por Ceará (42%); Rio Grande do Norte (41%) e Pernambuco (27%) - dos 184 municípios pernambucanos, apenas 50 aderiram a pesquisa. No levantamento, estados com menos de 20% de municípios respondentes não permitem generalização da análise.
Nesse contexto, o Ceará é o único estado do Nordeste em que mais da metade dos municípios respondentes (52%) realizam ações consistentes por uma educação antirracista. Também é o que mais investe nessa temática e o que mais tem equipe dedicada. No entanto, apenas 18% das cidades cearenses afirmam ter regulamentado a Lei nº 10.639/03.
Os estados de Alagoas (21%), Bahia (27%) e Rio Grande do Norte (16%) ficaram abaixo da média nacional (29%) entre as secretarias que realizam ações consistentes para atender à lei, assim como os oito municípios respondentes de Sergipe e os 37 do Maranhão.
Já as cidades dos estados de Alagoas, Bahia e Pernambuco são os que mais acompanham indicadores de
raça e cor para verificar o desempenho dos alunos.
Exposição busca fortalecer o combate ao racismo nas escolas
A fotografia como forma de trabalhar a cultura antirracista nas escolas, foi um dos pontos de partida do projeto Beleza Negra, idealizado pelo fotógrafo Ismael Holanda. A exposição, que teve sua edição no Escola de Referência em Ensino Fundamental e Ensino Médio (EREFEM) Liceu Nóbrega, inaugurada nesta segunda-feira (20), em celebração ao Dia da Consciência Negra, trouxe estudantes, professores e profissionais da educação como protagonistas de suas próprias histórias.
Cerca de 35 alunos do ensino fundamental participaram do projeto, que foi voltado para estudantes e profissionais que se autodeclaram pretos. Outro critério trabalhado junto com a psicopedagoga da escola, foi trazer alunos que já sofreram bullying e discriminação por causa da cor da sua pele. A exposição ficará em cartaz na escola até o dia 30 de novembro e é aberta ao público.
"O que vemos nas reações desses estudantes é o olhar diferente para si mesmo. Eles estão encantados com o resultado, o que nos deixa muito emocionados também. A exposição foi uma forma de levantar a auto estima deles, fazendo eles enxergarem que podem ser protagonistas das suas próprias histórias e furarem a bolha do preconceito que ainda existe na nossa sociedade", afirmou a gestora.
O fotógrafo Ismael Holanda explicou que os alunos da EREFEM Liceu Nóbrega puderam escolher onde iriam ser fotografados e que esse processo foi importante porque o projeto não se tratou apenas de registrar a imagem desses jovens, mas de mostrar a história de cada um deles.
“Vejo a fotografia como espelho, onde a arte também trabalha com sua autoestima. Muitas vezes, a fotografia revela coisas que não enxergamos. No projeto Beleza Negra, não é simplesmente clicar, eu converso com o aluno e a aluna, e eles escolhem qual espaço da escola mais se identificam e se veem representados. Por exemplo, uma aluna disse que o sonho dela era ser professora, e entrou na imagem com um livro", declarou o fotógrado, que possui dez anos de carreira e trabalha com viéis social.