Alfabetização é fundamental para garantia de direitos e cidadania
Garantir a alfabetização é essencial para o desenvolvimento social e autonomia dos indivíduos, sem o letramento cidadania plena é comprometida
A universalização do acesso à leitura e escrita na sociedade brasileira aconteceu de forma tardia. As mulheres e os escravizados, por muito tempo, foram privados de direitos que hoje são garantidos, como a educação, cultura e tantos outros elementos que, unidos, corroboram para o desenvolvimento do ser humano em sua integralidade.
Em 1967, a fim de reduzir a disparidade na alfabetização entre diferentes grupos sociais, a Unesco estabeleceu 8 de setembro como Dia Internacional da Alfabetização, uma data para evidenciar a necessidade de ampliar a qualidade do ensino nos anos iniciais e combater o não letramento em todas as faixas etárias.
De acordo com o último censo do IBGE, de 2022, 7% da população de 15 anos de idade ou mais não sabia ler ou escrever um bilhete simples. O pleno letramento, na sociedade atual, é uma ferramenta não só de conhecimento, mas de autonomia do cidadão.
Andrea Brito, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que a partir do crescimento da sociedade e serviços para além do trabalho no campo, o mercado de trabalho passou a necessitar de um certo nível de conhecimento.
“Os bens e serviços [como bancos e comércio] começam a funcionar e as pessoas não alfabetizadas vão ficando à margem, porque elas não têm um processo de escolarização que as acolham. No Brasil, isso acontece muito tardiamente, a sociedade se dá conta disso nos anos 1930, com os pioneiros da educação, mas nada é feito do ponto de vista político, nada se altera. Então, só na Constituição de 1988 é que existe, de fato, uma preocupação no Brasil com essas pessoas não alfabetizadas”, esclarece.
Os resultados do sistema estadual de avaliação em Pernambuco mostram que 59% dos estudantes da rede pública foram alfabetizados em 2023. Apesar de superar a média nacional (56%), ainda são muitas crianças que não possuem proficiência em leitura e escrita na idade certa, ao final do 2º ano do ensino fundamental. Vale ressaltar que a educação infantil e o ensino fundamental são responsabilidade dos municípios.
A educação pública no estado tem avançado, mas os números ainda são preocupantes. De acordo com um levantamento do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE), ao menos 85% dos municípios possuem um baixo desempenho no processo de alfabetização.
Para além do mercado de trabalho, ler e escrever são habilidades capazes de elevar a autoestima do indivíduo, de torná-lo autônomo em seu dia a dia e, principalmente, de garantir seu papel enquanto cidadão.
A língua configura-se como um fator de pertencimento, que identifica os indivíduos enquanto sujeitos sociais, pertencentes a um local, estado ou país. Andrea Brito explica essa relação a partir da apropriação da cultura, da literatura e da história de um local. O indivíduo pertence, mas não possui autonomia completa para consumir os bens culturais do local em que está inserido.
“A escola não deu conta de escolarizar suas crianças e promover esse deslocamento. Quando o sujeito começa a ler e escrever com autonomia, e tem esse apoio, a mediação com a escola e com outros espaços, ele consegue se perceber como um sujeito identitário”, conclui.
O acesso aos bens culturais, incluindo a leitura e a escrita, sobretudo em contextos de vulnerabilidade econômica e social, proporciona às crianças novas perspectivas de vida para além do determinismo que persiste no imaginário da sociedade: que a periferia está fadada ao fracasso, à criminalidade e às drogas.
“O processo de escolarização é fundamental, associado a outras questões. Essas crianças [nas periferias] não têm oportunidades de brincar, de frequentar uma biblioteca, de fazer aula de teatro, de ter um lazer…”, dessa forma, as políticas públicas são primordiais para universalizar a garantia de direitos e o desenvolvimento pleno dos indivíduos.
Quando não existe a iniciativa pública, as comunidades, reconhecendo a necessidade de promover sua própria cultura, organizam-se para suprir suas demandas.
Bibliotecas comunitárias estimulam o letramento
No bairro de Peixinhos, periferia de Olinda, no Grande Recife, o terreno do antigo Matadouro, quando desativado, tornou-se um ponto propício para tráfico de drogas e acúmulo de entulhos.
Esse cenário mudou no ano 2000, quando um grupo de artistas locais integrantes do Movimento Cultural Boca do Lixo criou, a partir de doações de livros, a Biblioteca Multicultural Nascedouro, um espaço que, desde então, faz nascer cultura, pensamento crítico, ideias e principalmente artistas e autores locais.
“Esta terra banhada em sangue de animais e suor de homens não será mais matadouro, posto que doravante será o nascedouro da cultura popular”, escreveu o poeta Oriosvaldo de Almeida em 1999. Até hoje, a biblioteca promove atividades de mediação de leitura para diferentes faixas etárias, cineclube e debates, além do empréstimo de livros, atividade clássica de uma biblioteca.
Há dez anos, a Biblioteca Nascedouro possui uma parceria com a UFPE, através de um programa de extensão, que envia estagiários para a biblioteca. O estudante de pedagogia Marcos Varela é um deles. Ele cresceu frequentando a biblioteca e hoje é bolsista do Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL) da UFPE.
“A biblioteca estava com as portas abertas para me receber enquanto criança periférica, criança pobre. E aqui eu tive um mundo de imaginação, possibilidades e transformação. Eu deixei de ser aquela criança passiva dentro de uma comunidade, que as pessoas não davam nada, não tinha nenhuma perspectiva para mim, e passei a ser uma criança leitora, uma criança que entendia o meu lugar”, compartilha sobre sua experiência na biblioteca.
Apesar de não ser papel das bibliotecas comunitárias realizar o trabalho de alfabetização, o contato com o livro e a formação leitora proporcionada por elas, que é o letramento, faz parte desse processo, assim como a produção literária.
“Defendemos o princípio de que não é só ficarmos passivos, consumindo os livros que já estão prontos e considerados cânones, mas a gente também quer criar os cânones na comunidade”, argumenta a professora Carminha Bandeira, colaboradora da Biblioteca Nascedouro e parte da equipe de formadores do CEEL.
No mesmo complexo em que a biblioteca está localizada, há quatro anos, existe a horta comunitária popular agroecológica Dandara, atendida pelo Centro Sabiá, onde trabalham mulheres de Peixinhos que ainda não foram alfabetizadas.
As professoras voluntárias Leozina Barbosa e Aurenice Lima, da UPE e UFPE respectivamente, lideram o projeto ABC das Marias, na Biblioteca Nascedouro, onde ensinam mulheres com mais de 50 anos de idade a ler e escrever.
Aurenice conta que o maior desafio foi adaptar a sala de aula clássica para mulheres que já não estão na faixa etária escolar. “O legal daqui, diferente de uma escola, é que, primeiro, eu fiz o convite e elas poderiam ter dito não. Aqui não tem prova. Você está aqui para se divertir. E uma maneira de se divertir é ler”, explica.
A leitura tende a transformar a vida dessas mulheres através da autonomia em seu dia a dia, na horta ou em qualquer outro patamar que elas quiserem alcançar.
“Estamos criando aqui um coletivo de pessoas que são de Peixinhos. Um sujeito coletivo que está agindo no sentido da transformação. Elas estão objetivamente participando integradas na transformação da vida do bairro. Estão na horta, estão discutindo a alimentação saudável, estão aprendendo a ler, estão fazendo um livro de receitas. Estão transformando as posições do bairro”, conclui.
Família e escola
Quando nasce um projeto social ou até mesmo uma escola, que é uma iniciativa governamental, numa comunidade, precisa haver, primeiro, demanda da população. Uma escola não pode existir isolada em si, sem conectar-se com o arredor, com as diferentes realidades que os estudantes vivenciam, e principalmente, com suas famílias.
O projeto político pedagógico, uma espécie de mapa que guia o planejamento escolar, deve considerar além da gestão escolar e professores, contextos e necessidades da comunidade.
Para alcançar o desenvolvimento de uma criança enquanto indivíduo social, o núcleo familiar desempenha um papel primordial. Ali está o primeiro círculo social da criança, mesmo que, muitas vezes, não seja um ambiente propício para o aprendizado. Ainda que as famílias possam enfrentar realidades de não letramento, o envolvimento na vida escolar dos filhos é fundamental.
A professora Andrea Brito explica que “mesmo quando as famílias não são escolarizadas, os gestos familiares, que é o gesto da atenção, do cuidado, do acompanhamento, são primordiais nesse processo. Então, quando você tem todo esse contexto adverso, mas as famílias se movimentam em fazer com que o filho vá para a escola, valoriza o material que ele tem e o conhecimento escolar, isso ajuda muito”.
A alfabetização não é uma responsabilidade isolada da escola ou da família, mas uma ação conjunta, que depende de investimento financeiro de órgãos públicos em infraestrutura, formação, materiais didáticos, e principalmente investimentos para garantir a essas crianças seu pleno desenvolvimento enquanto cidadão, garantindo o direito ao lazer, à escola e à cultura, e não apenas ofertar, mas garantir a qualidade desses espaços e equipamentos culturais que as crianças precisam para crescer.