Pé-de-Meia Licenciatura: Especialistas afirmam que bolsa de apoio não é suficiente para atrair novos professores

Sem detalhar o projeto, Camilo Santana afirmou que o programa visa estimular jovens do Enem a ingressarem na universidade com apoio financeiro

Publicado em 31/10/2024 às 15:53 | Atualizado em 31/10/2024 às 16:49

O governo federal deverá apresentar neste mês de novembro o programa "Pé-de-Meia Licenciaturas", com o objetivo de incentivar a formação de novos professores no Brasil. No entanto, especialistas em Educação alertam que apenas o auxílio financeiro não é suficiente para enfrentar o déficit de professores na Educação Básica, que pode chegar a 235 mil até 2040.

O programa visa oferecer bolsas de apoio a estudantes do ensino superior interessados na carreira docente, de maneira semelhante ao incentivo já disponível para alunos do ensino médio.

Embora ainda não tenham sido divulgados muitos detalhes sobre a implementação do programa, o ministro da Educação, Camilo Santana, enfatizou que o principal objetivo é estimular jovens que estão prestando o Enem a ingressarem na universidade com o suporte financeiro necessário.

O anúncio do "Pé-de-Meia Licenciaturas", como tem sido intitulado, foi feito durante sua participação na reunião dos ministros de Educação do G20, realizada em Fortaleza (CE).

Entretanto, fatores como o alto índice de violência nas escolas, a desvalorização da carreira, baixos salários e longas jornadas de trabalho contribuem para o desinteresse dos estudantes em áreas relacionadas à docência. É crucial, portanto, estabelecer um diálogo construtivo entre o Ministério da Educação, as universidades e os entes federativos, visando não apenas a formação de novos professores, mas também a retenção desses profissionais na carreira.

© Marcelo Camargo/Agência Brasil
Governo federal quer criar versão do programa Pé-de-Meia para incentivar estudantes a ingressarem nos cursos superiores de licenciatura - © Marcelo Camargo/Agência Brasil

Projeto precisa ser bem desenhado

O diretor-executivo do Todos pela Educação, Olavo Nogueira, conversou com a coluna Enem e Educação, nesta quinta-feira (31), sobre as ações propostas pelo governo federal para valorizar os professores da educação básica no Brasil. 

Com relação ao programa "Pé-de-Meia Licenciatura", Nogueira destacou que é preciso estar atento sobre como essa política vai ser formulada, mas que a ideia de atrair alunos do ensino médio com alto desempenho para a carreira docente é uma iniciativa absolutamente relevante. 

Segundo o diretor-executivo do Todos pela Educação, existem pesquisas que  indicam que uma das principais características de um professor com prática pedagógica de excelência é ter recebido uma boa formação durante o ensino médio.

Mesmo que isso possa parecer óbvio, é importante ressaltar que para se tornar um bom professor, é fundamental que o docente domine o conteúdo que irá lecionar. Assim, um estudante do ensino médio que apresenta bom desempenho nas disciplinas demonstrando domínio dos conteúdos e que queria seguir a carreira docente, poderá estar melhor preparado para ser um educador eficaz no futuro. 

"É exatamente aquilo que os países que tem um sistema de ensino de muita qualidade fazem. Se você olhar para países como Cingapura, Canadá, Filândia, Austrália e para o Chile, que está mais perto do nosso contexto, eles possuem políticas específicas para conseguir incentivar e atrair jovens de alto desempenhono ensino médio para a carreira docente", afirmou Olavo Nogueira.

No entanto, essas iniciativas se somam a outras políticas docentes de alta qualidade, fazendo com que os sistemas de educação sejam muito mais robustos. "É uma ideia que tem muita aderência na experiência internacional, mas para dar certo ela precisa ser muito bem desenhada", completou. 

Como já mencionado, os detalhes do programa Pé-de-Meia Licenciatura ainda não foram divulgados, mas, segundo Olavo Nogueira, é fundamental destacar três características essenciais para que essa política tenha um impacto positivo.

A primeira delas é a relevância do valor da bolsa de apoio financeiro. É crucial que essa quantia permita ao estudante se dedicar integralmente ao curso, evitando a necessidade de trabalhar em atividades que não estejam relacionadas à sua formação.

Outro ponto importante é a implementação de uma contrapartida para os estudantes beneficiados pela bolsa. Durante sua formação, eles deveriam realizar o estágio em uma escola pública, contribuindo assim para a educação básica e ganhando experiência prática. 

A terceira questão é que essas bolsas sejam disponibilizadas e acessadas por estudantes de alto desempenho no ensino médio que optam por ingressar em cursos de licenciatura e pedagogia, que tiveram uma nota alta no Enade.

"Acho importante termos uma política que atraia os estudantes para cursos que tenham uma boa nota e que sejam fortemente presenciais, e não aqueles cursos EaD, que tiveram uma forte explosão na formação de professores nos últimos anos", afirmou Olavo Nogueira.

Das mais de 1,7 milhões de matrículas em licenciaturas, 67,1% (1.148.576) foram em instituições privadas e 32,9% (562.407) em públicas, segundo dados do Censo Superior 2023. Nas instituições públicas, 80,3% das matrículas foram em cursos presenciais. Na rede privada, 90% foram em cursos EaD. Ao analisar os ingressos, 70,2% na rede pública foram em cursos presenciais, enquanto na privada, 93,5% foram em EaD.

Fortalecimento de ações já existentes

A coordenadora de apoio às licenciaturas do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Thaís Ludmila Ranieri, ressalta que, apesar de ações como o programa "Pé-de-Meia Licenciaturas" serem consideradas um caminho, é imprescindível que as universidades participem da construção desse modelo, algo que ainda não teria ocorrido.

Com o anúncio do programa, educadores questionam se ele servirá como um verdadeiro incentivo para a formação de professores, similar ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), promovendo articulação com a formação inicial e o desenvolvimento de habilidades práticas e teóricas. Ou se trate apenas de mais uma proposta assistencialista, tendo em vista que já que existem diversas bolsas de assistência acadêmica que visam ajudar os alunos a permanecer na universidade.

"Não estou dizendo que a bolsa de apoio é ruim, mas a grande questão é: onde está o ponto da formação do professor? Porque, para incentivar e desenvolver o desejo do estudante de permanecer na universidade e em um curso de licenciatura, não é suficiente receber apenas um incentivo financeiro, que sabemos que é extremamente importante também. Mas, estamos em um contexto em que essa formação é associada apenas ao aspecto financeiro", destacou Thaís Ranieri, em entrevista à coluna Enem e Educação.

Nesse sentido, outro questionamento pertinente neste momento, antes da apresentação do projeto, diz respeito aos investimentos que poderiam ser feitos em programas já existentes que também visam a permanência dos estudantes. Isso poderia incluir, por exemplo, a ampliação das bolsas de apoio.

O Pibid, citado pela coordenadora, é uma iniciativa da Política Nacional de Formação de Professores do MEC, destinada a fomentar a iniciação à docência e aprimorar a formação de professores em nível superior, com objetivo de melhorar a qualidade da educação básica pública no Brasil.

O programa proporciona aos alunos de licenciatura a oportunidade de se inserirem no cotidiano das escolas públicas. Para isso, a CAPES concede cotas de bolsas às Instituições de Ensino Superior (IES), que realizam seleções internas dos bolsistas para seus subprojetos aprovados. Podem participar como bolsistas do PIBID licenciandos, professores da rede pública e professores das IES.

Desafios da licenciatura: além do apoio financeiro

O professor de Matemática Marcello Menezes, com 48 anos de experiência no ensino, destacou que a educação não pode ser resolvida com soluções temporárias. Para efetivamente valorizar o setor, o primeiro passo deve ser o pagamento adequado dos professores. Ele enfatizou que o problema se inicia nesse ponto, já que formar um profissional capacitado para ensinar e educar demanda tempo e investimento.

Segundo ele, essa formação não pode ser substituída por iniciativas como a "bolsa professor" ou ações assistencialistas. "Por exemplo, entre os cursos de licenciatura em Física e Engenharia Civil, muitos escolhem a Engenharia. O mesmo acontece com Medicina: será que todos têm vocação para serem médicos? A verdade é que muitos veem na Medicina uma chance de sucesso econômico, já que saem do curso empregados", afirmou Menezes em entrevista à coluna Enem e Educação.

Ele ressaltou ainda que, não é que os futuros professores não possam receber apoio financeiro, mas a licenciatura tem deixado de atrair não só pela desvalorização na remuneração. Fatores como falta de segurança e políticas que investiam nos cuidados com a saúde mental dos educadores, também deveriam estar sendo priorizadas. "Não tem sido justa a tratativa da função de professor, ele não é protegido e é sempre o que leva 'a primeira pancada'", criticou o docente.


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