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Para CPI, ideia de imunidade a partir da contaminação da população pelo coronavírus orientou ação do governo

Roberto Campos Neto convenceu Jair Bolsonaro que sua ideia de volta da economia só é possível com vacinação total da população até dezembro

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Fernando Castilho

Publicado em 14/06/2021 às 8:00 | Atualizado em 14/06/2021 às 8:49
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Para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que analisa o desempenho do governo Bolsonaro no enfrentamento da covid-19, a tese de contaminação geral da população pelo coronavírus orientou as ações do ministério da Saúde e do próprio governo em geral, tanto nas estratégias de enfrentamento dos casos, compra de medicamentos como a cloroquina e, especialmente, em relação à compra de vacina.

Esse conceito foi, em março de 2020, ao encontro do entendimento de assessores do presidente, de que 90% da população de 220 milhões de pessoas não teria nenhum sintoma da doença, e os 10% restantes teriam, em sua maioria, sintomas leves tratáveis com medicamentos disponíveis no mercado, enquanto o número de mortos não chegaria, sequer, a 00,1%, como foi estimado pelo principal conselheiro do presidente, o deputado Osmar Terra, que tentou se credenciar para ser ministro da Saúde e estimou o numero em 2.000 vidas.

O Governo parece ter esquecido que a contaminação de 10% (22 milhões de brasileiros), como parece claro que o Brasil deve atingir, ainda este ano, embutia também um tratamento de, ao menos, 3% de casos considerado graves (6,6 milhões), exigindo hospitalização com longos períodos de internação e de até 0,03% (660 mil mortes), número para o qual o Brasil caminha.

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Esse entendimento de imunização geral, criando uma proteção natural, orientou as ações do ministério da Saúde, após a saída de Luiz Henrique Mandetta, quando ele informou ao STF que as mortes poderiam chegar a 440 mil vidas (número atingido em maio passado) e que foi determinante para a tomada de decisão da Suprema Corte sobre a autoridade dos estados e municípios no compartilhamento das ações.

Essa decisão foi de encontro ao que o presidente Bolsonaro pretendia com a liberação de todas as atividades econômicas enquanto o País iria tratando os infectados, restringindo a circulação apenas de pessoas idosas, iniciando o embate que dura até hoje.

Mas essa percepção também foi a do ministro Paulo Guedes, que viu uma séria ameaça da pandemia da sua estratégia de fazer a economia crescer em 2020.

Sua equipe estimou que R$ 30 bilhões, que seriam gastos com uma bolsa de R$ 200 para as famílias inscritas no CadÚnico do Ministério da Economia, seriam suficientes para proporcionar um colchão de proteção social.

O Ministério da Economia errou feio nas estimativas. Ao abrir o cadastro do Auxílio Emergencial, o Governo foi surpreendido com a inscrição de 60 milhões de pessoas que estavam invisíveis aos olhos dele. Para completar, numa negociação atabalhoada na Câmara Federal, o Congresso ampliou o Auxilio Emergencial para R$ 600, catapultando a conta liberal de Paulo Guedes.

Na outra ponta, o Banco Central, junto com a Receita Federal, ajudou na estruturação de um pacote de socorro às empresas, criando os programas de prorrogação de tributos, linhas de crédito com juros baixos, redução do compulsório dos bancos e estruturação do que foi chamado de "Orçamento de Guerra", estimado em R$ 600 bilhões.

Mas ainda assim, gastando quatro vezes mais que o déficit de 2020 previa no Orçamento Geral da União (OGU), o governo federal continuou defendendo a ideia de não fechamento das atividades.

E para garantir essa proteção, começou a ideia de difusão e distribuição de medicamentos sem comprovação de eficácia, que durou e dura até hoje. E isso se deu com o presidente sendo um forte incentivador da cloroquina, uma droga usada eficientemente no tratamento de malária, mas que se provou ineficaz já nos primeiros dois meses de uso nos hospitais do mundo inteiro contra a covid-19.

Hoje, pelos documentos existentes da CPI, sabe-se que em vários países, a falta de medicamentos, de fato, fez hospitais usarem medicamentos com bula definida para uma série de doenças na tentativa de salvar vidas.

Na verdade, até na adoção de antibióticos e corticoides e outras drogas para melhoria da função pulmonar e cardíaca os médicos e enfermeiros não sabiam que protocolos adotar, já que não havia nada na literatura médica como prescrição para a agressividade do coronavírus. Isso fez o mundo abandonar a ideia de improvisar medicamentos já no mercado. 

Mesmo gastando R$ 600 bilhões, o governo brasileiro continuou guerreando contra a proposta de paralisação das atividades e, parece claro, depois dos depoimentos de quatro semanas na CPI no Senado, que esse conceito prevaleceu na oportunidade em que foi ofertada a compra de vacinas.

Pelo elevado número de casos, e pela sua amplitude territorial, as indústrias farmacêuticas correram para o Brasil na tentativa de não apenas vender, mas fazer aqui os seus testes da chamada Fase 3 das vacinas. Mas o Governo resistiu e não percebeu a dimensão da oferta que seria retribuída na prioridade do recebimento dos imunizantes.

Pelo que existe de documento na CPI, mesmo quando o Governo de São Paulo fechou o acordo com a chinesa Sinovac, o Ministério da Saúde não percebeu o sinal e preferiu apostar apenas na proposta da AstraZeneca. Ainda assim com a contratação de um lote (100 milhões de vacinas) suficientes apenas para imunizar 50 dos 150 milhões de brasileiros elegíveis no primeiro momento.

Esse conceito, sabe-se agora, orientou as ações dos ministérios da Saúde, Economia, Relações Exteriores e todas as pastas de alguma forma envolvidas na questão das vacinas. Em função do conceito de que a população seria naturalmente imunizada se exposta ao coronavírus.

Não funcionou e tão sério como as 660 mil porte para onde o Brasil caminha, em 2021, foi o custo social, médico e econômico de tratar mais de 4,4 milhões de brasileiros que já precisaram de alguma forma de internação em UTI. Para que se tenha uma ideia, é importante lembrar que o SUS paga R$ 1.600 por cada diária de paciente num UTI referenciada.

Isso levou a novos esquivos na compra de respiradores, kits de intubação e suprimentos diversos que a rede do SUS e privada não estavam preparadas. O agravamento de uma segunda onda expôs, ainda mais, o equívoco do governo federal que já sabe que, além dos R$ 600 bilhões, terá que desembolsar, ao menos, mais R$ 150 bilhões, em 2021, no atendimento às ações médicas e sociais da pandemia.

Curiosamente, a mudança de percepção do governo e especialmente ao presidente se deu a partir de um integrante da equipe que, aparentemente, não tem relação com o ministério da Saúde.

Foi o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que convenceu o ministro Paulo Guedes e, a seguir, Jair Bolsonaro, que os discursos deles de volta da economia só seriam possíveis com a vacinação em massa, de modo que até setembro, aos menos 70% da população elegível esteja vacinada e que, até o final do ano, toda a população em geral tenha sido imunizada.

Roberto Campos Neto virou uma espécie de garoto propaganda da vacina nos fóruns econômicos onde qualquer presidente do BC tem audiência qualificada e determinante. 

O presidente Bolsonaro, que hoje respeita mais as análises de Campos Neto que as de Paulo Guedes, entendeu, mas isso não quer dizer que ele renuncie à ideia de tratamento precoce.

De qualquer maneira, o Brasil já comprou vacinas de vários fornecedores e pode receber vacinas suficientes. Mas para a CPI, a questão agora é como responsabilizar as pessoas que atuaram nesse cenário. E definir o papel de cada um dentro do colossal arquivo de dados de um terabytes.

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