O que os fenômenos Pablo Marçal e Deolane Bezerra revelam sobre os riscos das plataformas sem controle para a democracia

Donos de quase 40 milhões de seguidores, os dois influenciadores digitais mostram que podem desconstruir e construir suas próprias narrativas

Publicado em 08/09/2024 às 10:20 | Atualizado em 08/09/2024 às 13:00

Na última semana de agosto, a campanha do prefeito de São Paulo e candidato à reeleição, Ricardo Nunes (MDB), veiculou nas emissoras de rádio inserções que convocavam os ouvintes a pesquisar os termos “Pablo Marçal” e “PCC”. A tendência de buscas vinha subindo desde a manhã da última segunda-feira(2).

A equipe jurídica do também candidato Pablo Marçal (PRTB) acionou a Polícia Militar e relatou a presença de um “homem armado” que teria ameaçado o candidato durante um ato na Zona Leste da cidade e fugido em um carro após ser abordado pelos seguranças de Marçal. Depois que o episódio veio à tona, a equipe de mídias digitais entrou em ação e a curva de interesse por Marçal e PCC caiu. A pesquisa sobre Marçal e o possível atentado subiu.

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Candidato Pablo Marçal (PRTB) - Divulgação

Na quarta-feira (4), a advogada Deolane Bezerra foi presa no Recife (PE) por suposta ligação em um esquema que envolveria, também, o site de apostas "Esportes da Sorte", patrocinadora dos times masculinos do Corinthians, Athletico (PR) , Ceará, Bahia, Náutico e Santa Cruz.

Ainda na sala de depoimento de uma delegacia na SDS-PE, Deolane Bezerra divulgou uma carta escrita de próprio punho onde tranquiliza os fãs, se diz injustiçada e ironiza a prisão afirmando que está "enjaulada". Em apenas três horas, ela recebeu 1,340 milhões de curtidas e 60 mil comentários.

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Advogada Deolane Bezerra - Divulgação

Donos de suas verdades

Pablo Marçal (13 milhões de seguidores) e Deolane Bezerra (21 milhões) são fenômenos digitais que desafiam políticos e policiais sobre como tratar esse tipo de comportamento nas redes sociais de acordo com o ordenamento jurídico, embora isso já tenha sido objeto de cientistas de dados que entenderam o mecanismo.

Mas como tratá-los? Marçal, na política, e Doelane, na Polícia, são capazes de reverter a acusação formal de modo a que a audiência mude de lado.

Então, como os políticos ou as instituições devem tratar Marçal? Um novo outsider na corrida eleitoral. E como a Polícia de tratar Doelane? Uma senhora que declara um patrimônio aparentemente incompatível com sua renda oficial, que ela afirma sustentá-lo.

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Cientista chefe do CESAR, Silvio Meira - Divulgação

O cientista chefe do CESAR, Silvio Meira, responde com uma velha pergunta do mundo da computação. “Quem paga o que, para quem, por que e como, para quem fazer o que, para quem, onde, quando, por que e como?” para responder com uma advertência básica:

Plataformas, diz ele, são o principal esteio de sustentação de modelos de negócios digitais ou intensivos em efeitos ou performances digitais. E como há quase tantas definições de modelos de negócios quanto modelos de negócios propriamente ditos, podemos definir que um modelo de negócios responde à pergunta: Negócios.

Segundo Meira, isso não é um fenômeno causal decorrente do uso das redes sociais. Há raízes estruturais, complexas e difíceis de tratar. Um número cada vez maior de estudos mostra que o comportamento humano em redes sociais acontece como ativismo coordenado, cascatas de informação, bandos de assédio. Ele é muito similar ao comportamento emergente de grandes grupos de pássaros, peixes, formigas. Eles agem como unidade coesa, sem líder ou direção hierárquica.

Nada acontece espontaneamente

Isso quer dizer, na prática, que o comportamento de grupos em rede é determinado pela estrutura da rede, que molda o comportamento da rede, que molda a estrutura e assim por diante. Não acontece espontaneamente.

Segundo o diretor executivo da consultoria de análise de dados Bytes, Manoel Fernandes, com tantas "verdades" disponíveis na Internet, as pessoas passaram a escolher as versões mais compatíveis com a sua visão de mundo. “Marçal e Deolane são reflexos desse comportamento no qual o contexto é substituído pelo corte do vídeo.”

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Diretor executivo da consultoria de análise de dados Bytes, Manoel Fernandes - Divulgação

Ele lembra que há no Brasil 160 milhões de pessoas conectadas à Internet e em qualquer ranking internacional somos o País no qual as pessoas mais fazem uso de redes sociais.

Fernandes chama atenção para um dos pilares que sustentam a audiência de Marçal e Deolane: A prosperidade instantânea atrai, envolve e permite que as pessoas sonhem com uma vida melhor.

Além do fato de que do ponto de vista econômico, a “economia dos influenciadores” permite o surgimento de ganhos substantivos em um curto espaço de tempo, o que intensifica a atenção dispensada a esses personagens.

Distinguir entre o jurídico e o digital.

A professora e cientista de marketing digital, Rosário de Pompéia, nos devolve à abordagem sobre os efeitos da presença de personagens como Deolane e Marçal, lembrando que, em primeiro lugar, é necessário distinguir entre o aspecto jurídico e a dinâmica social e digital.

“Do ponto de vista jurídico, diz Pompéia, a grande questão é como as leis e as autoridades devem lidar com indivíduos que, mesmo sob acusações graves, podem usar as redes sociais como plataformas para se promover ou se defender publicamente”.

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Professora e cientista de marketing digital, Rosário de Pompéia - Divulgação

“Por outro lado, completa, há o comportamento da sociedade. A busca por temas polêmicos e a curiosidade em relação a figuras públicas envolvidas em controvérsias não são fenômenos novos na civilização”.

O fato novo e que mudou drasticamente é a velocidade e a escala em que isso ocorre nas redes sociais. As narrativas são criadas e disseminadas em questão de segundos, tornando difícil para a sociedade “e até mesmo para as instituições” acompanharem e analisarem criticamente o que está acontecendo, afirma a pesquisadora.

O professor Juliano Domingues, da Universidade de Pernambuco (UPE) e Católica de Pernambuco (Unicap) avalia que esses não são casos isolados, mas exemplos de um fenômeno que se manifesta nos últimos anos em diversos países e contextos.

Para ele, uma interpretação possível envolve, pelo menos, três dimensões interconectadas: a chamada "crise da democracia". Princípios básicos da democracia liberal, como o Estado de Direito e os consensos mínimos necessários para a convivência nas divergências, têm sido questionados; A segunda devido à aceleração da vida, onde a pressa se torna inimiga da reflexão. E a terceira é a dimensão da desinformação como estratégia discursiva.

Disseminação de desinformação

Para Domingues, no contexto de ataques aos princípios democráticos e de comunicação acelerada e irrefletida, a disseminação de desinformação assume um papel central.

O professor Silvio Meira ajuda na abordagem de Domingues explicando que existem três principais categorias de fakenews definidas como MISinformação, MALinformação e DESinformação. Fakenews, esclarece Meira, é definida formalmente como… informação deliberadamente fabricada e divulgada com intenção de enganar e induzir pessoas a acreditar em falsidades ou duvidar de fatos verificáveis apresentada como, ou provavelmente percebida como, notícia.

Para ele, o mais alarmante é o que a manipulação deliberada e algorítimica da MISinformação, MALinformação e DESinformação cria.

Silvio Meira lembra que o fenômeno não é de agora. Existe uma malha de narrativas extremistas, em muitos casos apocalípticas, cujo alvo preferencial é o estado democrático, os direitos humanos e individuais e grupos marginalizados ou excluídos, sustentabilidade ambiental.

“Este é um cenário em que grandes grupos de seres humanos -imersos, eles próprios, em fluxos de dados- se tornaram resistentes a fatos e dados” adverte o cientista.

Juliano Domingues afirma que esse processo de aceleração está relacionado ao desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação (TICs), que criaram novos fluxos de informação. “O smartphone simboliza o auge dessa transformação, promovendo uma nova dinâmica de poder, especialmente nas redes sociais digitais. E grande parte do modelo de negócios das plataformas digitais se baseia na desinformação ", esclarece.

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Professor Juliano Domingues, professor da (UPE) e da (Unicap) - Divulgação

Desafio ao público e ao institucional

Para Rosário de Pompeia, os casos de Marçal e Deolane mostram o poder das redes sociais na construção de narrativas que desafiam a lógica analógica de julgamento público e institucional.

Esse tipo de habilidade midiática, de certa forma, tem o potencial de reverter acusações ou, pelo menos, confundir o julgamento social, criando uma desconexão entre o que é investigado formalmente e a percepção popular.

Pompeia tem razão. Mas a questão é: como a sociedade e as instituições devem responder a esses fenômenos?

Para ela, no campo jurídico, há um desafio em equilibrar o direito de defesa e expressão com a necessidade de conduzir investigações imparciais e preservar a ordem pública.

E no plano social, a solução passa por uma educação midiática mais robusta, que capacite as pessoas a consumirem informação de forma crítica, entendendo os impactos que essas narrativas podem ter em suas percepções e decisões.

Silvio completa a proposta de Rosário Pompeia lembrando que a Finlândia, não por acaso, é a sociedade mais resistente à misinformação, malinformação e desinformação da Europa. “Não é só a qualidade do sistema educacional; é uma estratégia nacional contra fakenews, cujas ações se iniciam a partir da pré-escola” , completa.

Não é tarefa simples. Talvez porque o aparelho do Estado sequer consegue entender o que está acontecendo nas telas. E porque, agora, o problema é muito maior do que a rede “pura e simples” de conexões entre agentes. É a rede de relacionamentos, interações, significados que formam comunidades. O "novo” espaço público é em rede. E rede social, lembra Silvio Meira.

Faz sentido. Nada menos do que entre 700 milhões e um bilhão de horas vistas no Youtube por dia são oriundas de recomendação algorítmica. Redes online não só criam câmaras de eco, espalham fakenews e incentivam a circulação de ideias extremistas.

Agora os dados mostram que idosos espalham até sete vezes mais fakenews do que jovens. Imaginava-se que tal comportamento resultava de declínio cognitivo e solidão. Mas um estudo recente mostra que relações interpessoais e analfabetismo digital são parte das causas.

Para juliano Domingues, o acesso e uso das plataformas digitais por si só não é ilegal. Mas ele levanta preocupações sobre a manipulação da percepção pública e o impacto disso em investigações e julgamentos que só os juristas podem responder. Rosário de Pompéia avalia que esse ritmo acelerado exige “respostas rápidas, impulsivas, quase automáticas, sem espaço para reflexão crítica ou diálogo civilizado”.

Para Silvio Meira, é preciso estudar muito mais detalhada e amplamente as intervenções sociais e cognitivas que minimizem os efeitos da desinformação. Deve-se desenvolver estratégias e sistemas para identificar quando o ciclo de vida de fakenews, em qualquer contexto. Também é preciso fomentar, em toda a sociedade, no sistema educacional e a partir dos primeiros níveis de aprendizado, a capacidade de refletir sobre e responder criticamente MISinformação, MALinformação e DESinformação.

Também é preciso entender que há Estados em guerra digital e social contra os Estados democráticos a se contrapor a tal agressão. Por fim, é preciso entender que o confronto informacional é não linear, seja intra ou entre países e não pode ser combatido de forma linear.

A história mostra que tal tolerância ao extremismo deveria ser intolerável. É preciso agir. Antes que seja tarde demais” conclui Silvio Meira.

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Nas redes digitais, o usuário se comporta em nuvem. - Divulgação

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