"É um boicote à literatura"

Fabrício Carpinejar critica reality show pela proibição à entrada de livros na casa dos confinados

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Fábio Lucas

Publicado em 18/01/2024 às 17:17
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Em defesa da leitura como hábito saudável e estimulante de relacionamentos melhores, o escritor Fabrício Carpinejar vem criticando, na imprensa e nas mídias sociais, a proibição que bane os livros do ambiente de confinamento que se torna o palco das atenções de milhões de espectadores no país, por mais de três meses, a cada início de ano, no Big Brother Brasil (BBB). O mesmo reality show já permitiu a leitura livre pelos participantes, servindo como importante canal de difusão de títulos e autores. Mas as regras mudaram, talvez para impedir a moderação e a reflexão que a leitura suscita, como ressalta o poeta e cronista nesta entrevista.
Para se ter uma ideia do potencial de influência do programa, mesmo sem a permissão de se ler lá dentro, basta que um livro seja mencionado para que a procura pela obra cresça nas livrarias e sites. Foi o caso de “A sociedade do espetáculo”, de Guy Debord, citado por Wanessa Camargo há poucos dias em uma conversa. Para Carpinejar, autor de mais de 50 obras que venderam quase 1 milhão de exemplares, o que se faz é um “boicote violento à literatura”, pois a música e o cinema são promovidos, sem problemas. “Teríamos a chance de converter nomes pouco conhecidos em campeões de venda, em surpreendentes best-sellers”, caso a proibição caísse, diz ele.

JC - O público está acostumado a debates que surgem a partir do que os participantes do BBB fazem e falam. Devido à grande audiência, alguns desses tópicos viram assuntos nacionais. O Sr. chamou a atenção para algo que os confinados não fazem. Por que?
Fabrício Carpinejar - São vinte e quatro horas de um reality, e você pode dormir, pode fazer academia, pode se isolar num canto, mas não pode ler? Não faz sentido. A leitura deve ser uma atividade orgânica e natural. Sem ela, parece que você está sendo moldado a não pensar, a não refletir, a não moderar as suas ações. A leitura é um Rivotril natural para não agir intempestivamente, a partir dos rótulos. A solidão cura mesmo em espaços de intensa interação. Ler é falar melhor, ouvir melhor, encontrar a empatia.

JC - Em mais de 20 anos de programa, a cultura digital avançou, mudando o cotidiano das pessoas. O Sr. acredita que a dominação das telas pode ser um dos fatores para que a falta de livros e leitura seja vista com naturalidade pelos participantes e pelo público?
Fabrício Carpinejar - Que todos tenham o direito a um e-book, porém que não sejam impedidos de filtrar suas emoções a partir das histórias que emanam da nossa produção autoral. É um boicote violento à literatura especificamente. Pois existe a apresentação de nossos cantores e músicos nas festas, sessões de filmes nacionais no sofá, mas nenhum autor ou autora pode entrar sob forma de livro no BBB. Por que o veto de uma das artes essenciais da vida?

JC - A cada edição, repete-se que a realidade ao vivo é uma espécie de espelho da sociedade brasileira. Se tomarmos a censura à leitura, e a falta que a leitura faz - ou não faz - para quem está lá dentro ou para quem acompanha o programa, qual reflexo aparece?
Fabrício Carpinejar - Reflexo de que o livro serve para a decoração. Afinal, o BBB não abriu mão de uma biblioteca cenográfica na sala. Ou seja, o livro é um enfeite, não deve ser lido.

JC - Na opinião do Sr., um produto com tamanho alcance de público poderia prestar um serviço importante de difusão e estímulo do hábito de ler para seus espectadores? Em especial num país como o Brasil, onde o acesso à leitura é uma questão recorrente, e muitos com acesso aos livros não lêem?
Fabrício Carpinejar - Sem dúvida. Teríamos a chance de converter nomes pouco conhecidos em campeões de venda, em surpreendentes best-sellers. Aqueceríamos o mercado livreiro num período morto de janeiro (ele começa a existir na volta às aulas, em fevereiro). Veja o exemplo de Juliette. Ela registrou o impacto de sua experiência com a leitura de “Os Quatro Compromissos - Um guia prático para a liberdade pessoal”, do autor mexicano Don Miguel Ruiz. Disse ter lido para se preparar para o confinamento. O livro aborda algumas crenças autolimitantes baseadas na filosofia tolteca, um antigo povo do México. Óbvio que a obra não para de acumular reimpressões.

JC - Se o Sr. visitasse a casa cenográfica do BBB, o que diria aos confinados, e ao público?
Fabrício Carpinejar - Eu diria:
— Deixe a literatura entrar, que vocês saberão o momento certo de falar e, ainda mais, o momento certo de se calar.

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