"Há irregularidades sérias", diz procuradora que investiga desvio de recursos das obras da BR-101 no Grande Recife
Coluna Mobilidade conversa com a procuradora federal que denunciou à Justiça oito pessoas pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva
A leitura a ser feita da entrevista que segue com a procuradora do Ministério Público Federal (MPF) em Pernambuco Silvia Regina Lopes é de que, como advertido ainda antes de 2017, a durabilidade das obras de requalificação do contorno urbano que a BR-101 faz da Região Metropolitana do Recife foi comprometida por irregularidades e ficará a desejar. Ou seja, é provável que a população veja, em breve, a BR apresentar problemas como antes. É fundamental lembrar, para quem não sabe ou esqueceu, que a requalificação dos 30 km do contorno urbano da BR-101 é uma obra esperada há, pelo menos, 20 anos. A BR-101 virou um dos pulmões viários do Recife e eixo essencial para a RMR e o Sistema Estrutural Integrado (SEI), a integração do transporte público coletivo do Grande Recife.
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Não é uma rodovia qualquer, fora da cidade. Por isso, a Coluna Mobilidade entrevistou a procuradora responsável pela denúncia à Justiça Federal de oito pessoas suspeitas de usar indevidamente e desviar recursos públicos da obra de requalificação. A entrevista confirma o que o cidadão que utiliza a rodovia diariamente já percebeu: que a obra tem inúmeras irregularidades e está aquém do que se projetou ainda em 2012, com recursos públicos do governo federal. Que é visível a falta de cuidado com a requalificação, já com cara de velha, suja, incompleta e insegura. Confira.
JC - De fato, o MPF está convencido de que a obra de requalificação do contorno urbano da BR-101 na Região Metropolitana do Recife foi mal feita, sem compromisso, responsabilidade e com irregularidades?
Silvia Regina Lopes - O MPF está, sim, convencido de que há elementos suficientes para se apresentar uma denúncia pela prática basicamente de três crimes: peculato, corrupção ativa e passiva, e lavagem de dinheiro. Nós estamos convencidos de que há sérios problemas com esse contorno viário da BR-101, compreendido do km 52 até o km 83, na Região Metropolitana do Recife. Temos relatos por parte do Tribunal de Contas da União (TCU), ratificados pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), de irregularidades muito sérias na contratação de uma empresa, intitulada Construtora Andrade Guedes, em 2017, com um termo de compromisso tratado em 2012, mas com a contratação sendo realizada apenas em 2017. Contrato no qual deveriam ter sido aplicados R$ 185 milhões e que já teve R$ 125 milhões liberados sem que tivessem sido estabelecidas desde o início um ente fiscal - uma empresa fiscalizadora idônea. A empresa contratada tinha ligação com a construtora. Situação que só foi regularizada após a interferência do TCU e do TCE. E, nesse período, a fiscalização ficou sendo feita por um funcionário do DER-PE, que terminou denunciado pela prática dos três crimes que citei anteriormente, juntamente com o ordenador de despesas, além de outras pessoas que estavam ocultando o patrimônio dos servidores para usufruir dos milhões de reais enviados para a obra.
JC - Quais os sinais iniciais de irregularidades?
Silvia Regina Lopes - Causou estranheza logo de início para os fiscais o fato de o DNIT não ter feito a contratação da empresa diretamente. Foi realizada pelo órgão estadual, o que não é um procedimento comum. Outro aspecto foi que, num primeiro momento, não havia fiscal. Depois, o fiscal escolhido tinha ligação com a construtora da obra. E isso foi percebido pelos tribunais, que viram que o fiscal era funcionário da empresa. Aí, quando os tribunais pressionaram, esse engenheiro deixou de ser o fiscal da obra e passou a ser um funcionário do DER-PE, que ocupou uma diretoria do órgão e posteriormente foi denunciado por corrupção ativa e passiva.
JC - A grande fundamentação para todo o processo foram os alertas feitos pelos tribunais de controle ainda antes do início das obras, ou seja, antes de 2017?
Silvia Regina Lopes - A grande base foram as medições dos tribunais de contas. O MPF só consegue avaliar uma repercussão criminal a partir de uma análise de engenharia, já que estamos falando de uma obra de engenharia. Quando estavam fiscalizando a obra, os engenheiros do TCE e do TCU observaram algumas impropriedades importantes da qualidade do trabalho, de observância do plano de execução. Pontos que antes mesmo dessa deflagração já haviam sido apontados em contatos com o DER-PE e a construtora para que fossem regularizados. Como os empresários e os funcionários do DER-PE perceberam que estava havendo uma fiscalização intensa, houve uma tentativa de observância desses apontamentos. Os tribunais de contas do Estado e da União observaram uma impropriedade, uma não comprovação de regularidade de aplicação de recursos, de lisura, de correção da obra num montante de R$ 60 milhões. Na época, essa quantia foi impugnada porque não se conseguia ver a respectiva aplicação na obra. Representava um pouco menos de 50% de todo o projeto. Então, quando houve a impugnação, os funcionários do DER-PE e da construtora realizaram modificações na execução de tal forma que conseguiram uma adequação, porém não total. Os engenheiros do TCU e do TCE ainda atestaram problemas de execução na ordem de R$ 14 milhões. Ou seja, R$ 14 milhões teriam sido supostamente aplicados na obra, mas sem comprovação da realização dos trabalhos. Isso tudo com a utilização de empresas laranjas e fictícias. O dinheiro foi repassado para a construtora e sobrou, ainda, em que pesem todas essas tentativas de sanar a partir do que os tribunais observaram, R$ 14 milhões com despesa descoberta. Ou seja, receberam o dinheiro e não aplicaram. Não comprovaram que tinham aplicado. Isso tudo quem constatou foi a auditoria em engenharia dos tribunais de contas. O MPF recebe e avalia a qualidade, a lisura e a coerência do relato. Mas a partir do que foi identificado pela engenharia.
JC - Ou seja, no primeiro momento, esse valor irregular era de R$ 60 milhões e, no decorrer da investigação, foi reduzido para R$ 14 milhões, correto?
Silvia Regina Lopes - Isso. Quando houve essa observância, quando eles perceberam que os auditores estavam investigando e já tinham feito autuações para exigir a correção, sob pena de paralisação da obra e responsabilização, ainda houve uma tentativa de correção. Mas mesmo assim, os R$ 14 milhões ficaram descobertos. Ou seja, não foi comprovada a destinação de despesa nesse valor. Esses R$ 14 milhões, quando a Polícia Federal, acompanhada do MPF, foi averiguar a comprovação, observaram que os denunciados apresentaram notas fiscais de empresas absolutamente inidôneas para realizar qualquer tipo de serviço de engenharia. Estamos falando de empresas laranjas, inexistentes, enfim, que não poderiam realizar qualquer tipo de serviço. Então já é um indício.
JC - E esses 46 milhões de diferença foram comprovados?
Silvia Regina Lopes - Eles corrigiram esse valor. Os tribunais de contas observaram que a execução não estava batendo com o montante repassado. Então eles se esforçaram nesse aspecto para tentar provocar uma aprovação da obra de acordo com o que a engenharia estava apontando, mas mesmo assim, com todo esforço de adequar ao projeto inicial, R$ 14 milhões restaram sem comprovação. Inclusive com fraude, ao apresentar notas fiscais de empresas laranjas. E veja, quando o corpo de engenharia diz que não está adequado ele está tirando pelo mínimo, viu? É o que ele consegue observar. Por exemplo, eles vão observar a espessura de um asfalto para comprovar se o material aplicado foi adequado, recolhem, levam para um laboratório, analisam, mas há o que é inequívoco. Tudo isso foi identificado pelo corpo de engenharia e ratificado pelos ministros e conselheiros dos tribunais. E foi o que aconteceu no caso da BR-101: R$ 14 milhões não foram aplicados na obra, inclusive com a utilização - o que é mais grave - de comprovação de serviços prestados por fornecedores totalmente inidôneos, laranjas, inexistentes e fictícios.
JC - Na época em que os alertas começaram a ser feitos, a indignação do governo de Pernambuco foi muito grande. Como a senhora vê essa postura?
Silvia Regina Lopes - Veja, nós, órgãos de controle, não nos reportamos a governos. Porque o governo não tem nem personalidade jurídica e, se a tivesse, não teria responsabilidade criminal porque ela é restrita a pessoas. Quando temos esse tipo de atuação não é contra um governo. Estamos simplesmente olhando e averiguando se o dinheiro repassado correspondeu a obras com a mesma qualidade que deveria. No caso da BR-101, não foi feito com a mesma qualidade que era exigida e, mesmo depois que fizeram parte das correções apontadas pelos órgãos de controle e investigadas pela Polícia Federal, não conseguiram comprovar o uso de parte dos recursos. E mais: ainda usaram documentos falsos.
JC - O MPF não tem dúvidas de que, de fato, houve o uso indevido do dinheiro público. É isso?
Silvia Regina Lopes - Não se trata de ter ou não ter dúvidas. O MPF tem elementos suficientes para apresentar a denúncia considerando as conclusões do corpo de engenharia e as investigações da Polícia Federal de que houve peculato, corrupção ativa e passiva e o crime de lavagem de dinheiro. Há indícios suficientes para isso. Haverá, é claro, o contraditório ainda no curso da ação criminal. Após esse contraditório nós teremos a formação integral e manteremos a acusação ou, eventualmente, a manteremos em alguns pontos. Mas os elementos agora são bastante robustos e nós entendemos que, com a investigação da PF e o apoio técnico dos tribunais de contas, é possível identificar que há irregularidades sérias naquela obra. E não se trata de se opor a governos, insisto.
JC - Por isso eu insisto na pergunta: lá atrás, as pessoas que comandavam o DER-PE e a Secretaria de Infraestrutura de Pernambuco alegaram que eram críticas políticas, intrigas de engenheiros….
Silvia Regina Lopes - Não existe isso entre órgãos de controle. O princípio republicano é: o cidadão precisa ter seus impostos aplicados nas finalidades públicas respectivas. E os órgãos de controle existem para que não haja ruído ou desvio nesse recolhimento de tributos e aplicação em serviços, em obras. Então, os fiscais chegam e avaliam se houve o serviço. Há, inclusive, um diálogo na esfera administrativa, nos tribunais de contas. As empresas se pronunciam, apresentam notas, procuram comprovar aquela despesa. Só que no caso da BR-101, R$ 14 milhões estão, inequivocadamente, sem respaldo. Inclusive, alguns aspectos causaram estranheza: 1) o DNIT não ter feito a contratação diretamente e esse processo ter sido feito pelo Estado. 2) O primeiro fiscal da obra ser da própria empresa que estava executando o projeto. 3) O fato de ter havido a liberação de recursos em massa sem a medição correspondente. Medições que foram atestadas como falsas. A empresa ainda argumentou que pediu para liberar mais recursos porque houve necessidade, mas não pode ser assim. Tudo tem que seguir um cronograma. Só libera a parcela seguinte a partir da realização da anterior. Você não pode antecipar uma realização.
JC - E foi isso que aconteceu?
Silvia Regina Lopes - Sim. Foi o que aconteceu. Eles estavam atestando como realizada a obra que não estava realizada. E com a liberação de dinheiro. Quando os fiscais disseram eu estou vendo, eles começaram a construir de fato. E foram atrás de construir tudo, tentando, obviamente, satisfazer o que os órgãos de controle estavam pedindo. Porque as irregularidades tinham sido evidenciadas. Todavia, inequivocadamente, R$ 14 milhões restaram não comprovados. Eles, inclusive, tentaram até se isentar da responsabilidade afirmando que a engenharia havia dito que estava tudo certo. O que não é verdade. O que a engenharia disse foi que, após a autuação, houve uma tentativa de, digamos, adequação, porém, inequivocadamente, R$ 14 milhões não foram comprovados. E quando foram observar o que tinha de comprovação, tinham sido usadas notas frias, notas de empresas que não são idôneas, que não prestam serviço de engenharia, que têm ligação com os empresários. Eles não conseguiram comprovar a execução dos serviços. O nome disso é peculato, desvio. Receberam e não fizeram.
JC - Mas os envolvidos vão responder pelo uso incorreto dos R$ 60 milhões ou apenas pelos R$ 14 milhões?
Silvia Regina Lopes - Do ponto de vista técnico, o peculato foi praticado em cima dos R$ 60 milhões. A devolução, por exemplo, dos R$ 46 milhões que eles correram atrás para justificar, é um arrependimento posterior. A denúncia foi dos R$ 60 milhões. Por isso, vão responder por esse valor. Deverá haver uma diminuição da pena, mas a responsabilidade será pelo total. Agora, os R$ 14 milhões terão que ser devolvidos aos cofres públicos.
JC - Poderia ser um centavo, teria que devolver …
Silvia Regina Lopes - Isso. É o meu e o seu dinheiro. São impostos que nós pagamos. O que queremos saber é: o administrador público recebeu um valor, ele aplicou? Se não aplicou, cadê? Não justificou? Vai responder.
JC - A senhora utiliza a BR-101?. Teria como emitir uma opinião como cidadã sobre a obra? Pergunto porque quando circulamos na rodovia percebemos que ela já tem cara de velha, de uma obra suja, apesar de não ter sido, sequer, concluída. A impressão é que em dois ou no máximo três anos estaremos vivenciando os mesmos problemas de antes.
Silvia Regina Lopes - De fato, ela já foi pior. Mas eu estou aqui representando o MPF e, o fato é que, não é porque houve alguma melhoria na rodovia que não iremos avaliar a qualidade dessa melhoria, a durabilidade dessa obra. E nesse caso, ainda temos outro problema que é o planejamento da obra. É preciso lembrar que o convênio entre o DNIT e o governo do Estado é de 2012. E o contrato com a construtora foi iniciado em 2017. Quer dizer, cinco anos depois. Ou seja, a obra começa a encarecer. Ela já não tem o preço inicial. O delay é muito sério. Faz com que o dinheiro que inicialmente daria para arrumar aquele trecho não atenda mais. Afinal, estamos falando de nove anos.
JC - Esse foi o argumento do Estado na época em que os alertas sobre a qualidade da obra começaram. Dizia que escolheram o pavimento semi-rígido porque o rígido ficaria muito caro...
Silvia Regina Lopes - Quem apresenta um projeto de 2017 tem que cumpri-lo. Se ele encareceu devido ao tempo e à demora administrativa, tem que haver uma repactuação. O que não pode é substituir por uma material que não tem a mesma qualidade ou não está previsto no projeto. Tem que se explicar a necessidade de alteração e repactuar os valores. Isso precisa ser feito às claras, para que todos vejam.
JC - Pelo que a gente acompanha no processo, com as falhas e ausências já apontadas, de fato é uma obra que não vai durar muito, que terá muitos problemas?
Silvia Regina Lopes - Eu não tenho como dizer que essa obra dará problemas porque isso está além da minha percepção técnica. Preciso trabalhar com os fatos, com a tecnicidade. O fato é que já foram liberados R$ 125 milhões dos R$ 185 milhões e cabe ao usuário avaliar se satisfaz ou não, considerando o intervalo entre o convênio e a contratação da empresa. Até porque o dinheiro sempre existiu. Não era falta de dinheiro. Esse dinheiro sempre esteve na conta. Se o valor não era o adequado quando a obra começou, isso deveria ter sido colocado e repactuado com o Estado.