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A morte do BRT: destruição chega ao limite em Pernambuco

Quase oito anos depois, com pouquíssimas exceções, o BRT está à beira da morte em muitas cidades - com destaque para os sistemas da Região Metropolitana do Recife e do Rio de Janeiro. A pandemia de covid-19, que ampliou ainda mais a crise do transporte público em geral, foi mortal para o BRT, que tem uma operação mais cara

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Roberta Soares

Publicado em 12/12/2021 às 8:30 | Atualizado em 13/02/2023 às 12:57
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A Coluna Mobilidade inicia uma série de reportagens sobre os sistemas de BRT brasileiros, que ganharam protagonismo no País na época da preparação para a Copa do Mundo de 2014. Um conceito criado ainda em 1974, em Curitiba (PR), pelo arquiteto urbanista e político de carreira Jaime Lerner, que tinha como princípio provar à sociedade que transporte público coletivo pode ter qualidade a partir de quatro premissas: prioridade incontestável no sistema viário da cidades (independentemente do prefeito ou da vontade do político da vez), veículos grandes e confortáveis, embarque em nível para evitar o sobe e desce de degraus, e tecnologia de ponta para garantir o pagamento da passagem ainda na estação e a comunicação em tempo real com o passageiro. Quase oito anos depois, com pouquíssimas exceções, o BRT está à beira da morte em muitas cidades - com destaque para os sistemas da Região Metropolitana do Recife e do Rio de Janeiro. A pandemia de covid-19, que ampliou ainda mais a crise do transporte público em geral, foi mortal para o BRT, que tem uma operação mais cara.

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A morte do BRT - Artes JC

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A morte do BRT: aposta na gestão privada é a esperança do sistema

Confira o especial multimídia BRT - E agora?

Opinião: BRT do Recife é fratura exposta da visão do Governo de Pernambuco sobre transporte público

Em Pernambuco, a situação é muito grave. E já vinha de antes da crise sanitária. O BRT Via Livre, composto por dois corredores conectando o Centro do Recife às regiões Norte e Oeste da Região Metropolitana, ficou oneroso demais para o governo de Pernambuco. Por fazer parte dos dois únicos lotes do transporte público metropolitano que foram licitados ainda em 2015, o desequilíbrio econômico-financeiro precisa ser coberto pelo Estado. O sistema nunca alcançou a demanda projetada lá atrás - 300 mil passageiros por dia - e segue sofrendo com a falta de prioridade viária nos percursos, situação acompanhada por inertes gestões públicas. A covid-19, lógico, potencializou tudo isso.

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Corredor de BRT Norte-Sul - ARTES JC

Sem exageros, podemos dizer que o BRT pernambucano está destruído. Que os R$ 300 milhões gastos no passado para implantar o sistema no Grande Recife foram quase desperdiçados. Se já era difícil convencer a população de que o modelo seria algo além do ônibus comum no auge do sistema, em 2014 e 2015, agora é algo impossível. Especialmente no Corredor Norte-Sul, que tem 33 quilômetros ligando o Recife ao município de Igarassu, na RMR, opera com 26 estações e até hoje segue incompleto - depois de sete anos de operação. A descaracterização do sistema, os arremedos na tentativa de reduzir custos e o abandono das estações destruíram qualquer perspectiva para o usuário. O Norte-Sul, inclusive, está praticamente parado até agora, um ano e nove meses depois do início da pandemia. Das 26 estações construídas, apenas oito estão em operação e, segundo informações de bastidores, o Consórcio Conorte não pretende seguir com o modelo de embarque e desembarque nas estações. Todos os BRTs, inclusive, ganharam catracas e têm operado como veículos comuns. O corredor mais parece um Frankenstein, completa e totalmente descaracterizado.

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Uma minuta foi elaborada pelo governo federal com a participação de organizações da sociedade civil, via Fórum Consultivo da Mobilidade Urbana e com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Os principais pontos foram indicados ao JC por especialistas do setor - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM/ILUSTRATIVA
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Corredor de BRT Leste-Oeste, no Recife - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM

O BRT pernambucano também foi completamente vandalizado. Por duas vezes. A primeira, ainda antes da pandemia, no fim de 2019, quando vândalos começaram a furtar a infraestrutura das estações - equipamentos, é importante destacar, pensados para ter uma sofisticação que não condiz com a realidade brasileira, sendo os únicos refrigerados do País. Além de Pernambuco, somente Dubai, nos Emirados Árabes, têm estações de BRT com ar-condicionado. Mas até mesmo a refrigeração o sistema pernambucano perdeu. Depois do piso e tudo que pudesse ter alumínio, os vândalos roubaram a fiação e parte dos sistemas de ar-condicionado. Restou pouca coisa.

A segunda vandalização foi ainda maior, já durante os primeiros meses da pandemia de covid-19, por volta de julho de 2020. No Norte-Sul, todas as estações foram “depenadas”. Não restou nenhuma. Assim como a primeira, a segunda vandalização teve como razão a decisão do governo estadual de retirar a segurança patrimonial que cuidava dos equipamentos à noite, durante a paralisação da operação. Para economizar R$ 650 mil por mês, tirou os vigilantes e transferiu a responsabilidade para a Polícia Militar de Pernambuco, que não conseguiu dar conta da vigilância patrimonial diante das demandas da segurança pública urbana em geral. E, dessa vez, a degradação chegou também ao Corredor Leste-Oeste, que liga o Centro do Recife ao município de Camaragibe, na área Oeste da RMR, e, além de ser menor em extensão, fica menos exposto porque tem um traçado mais urbano, pela Avenida Caxangá, uma dos principais corredores viários e de transporte público da capital.

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Corredor de BRT Leste-Oeste - ARTES JC

Embora menos impactado pela degradação, o Corredor Leste-Oeste sofre com a lotação dos BRTs nos horários de pico da manhã e da noite. A diarista Maria Aparecida de Jesus, 48 anos, sente o problema na pele. Já perdeu a conta de quantas vezes optou por sair do BRT devido à lotação. De tão desconfortável, é comum optar por pagar duas passagens. “Às vezes é o jeito. Já tive que fazer isso para não passar mal. Mesmo sendo um ônibus grande, a quantidade é insuficiente nos horários de maior movimento, principalmente pela manhã. Não há conforto nesse sistema, infelizmente. Acabaram com ele”, lamenta.

São muitas as razões para o definhamento visível do BRT pernambucano. Oswaldo Lima Neto, doutor em transporte, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ex-presidente da extinta EMTU (hoje o Grande Recife Consórcio de Transporte Metropolitano - CTM), destaca, entre as principais, a preocupação dos gestores que o criaram com a sofisticação, deixando de lado detalhes básicos para a boa operação. “O BRT pernambucano começou mal. O Leste-Oeste, por exemplo, sai do Terminal de Camaragibe em tráfego misto. Já o Norte-Sul, chega ao Centro do Recife do mesmo jeito. Isso não poderia ter acontecido e, principalmente, ainda acontecer tanto tempo depois dos sistemas serem implantados. É absurdo. Se eu quero tirar o carro da rua, preciso melhorar o serviço de transporte coletivo para atrair mais usuários. Qualidade significa frequência, baixa lotação, tarifas mais condizentes. Caso contrário, o passageiro novo não é atraído e o que já usa sai para a motocicleta”, ensina Oswaldo Lima Neto.

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JC-CID1212_BRT-Cronologia WEB.jpg - ARTES JC

O prejuízo do sistema pernambucano segue sendo computado todos os meses. Com a demanda ainda baixa - cerca de 75% do que transportava antes da pandemia de covid-19 -, o BRT Via Livre tem recebido cada vez mais subsídios públicos. São entre R$ 35 milhões e R$ 40 milhões por ano para a operação do Consórcio Conorte, que opera o Corredor Norte-Sul (além de outras linhas), e de R$ 25 milhões a R$ 30 milhões para o Consórcio MobiBrasil, que opera o Leste-Oeste (além de outras linhas). Os valores do subsídio eram menores antes da pandemia, em aproximadamente R$ 10 milhões para cada contrato.

Os problemas são semelhantes nacionalmente. Aliás, os equívocos são cometidos em âmbito nacional. A leitura é feita pela gerente de mobilidade urbano do WRI, Cristina Albuquerque. O WRI Brasil faz parte do World Resources Institute (WRI), instituição global de pesquisa sustentável com atuação em mais de 60 países. “Os BRTs foram pensados como corredores e não como um projeto de integração multimodal. Pensaram apenas no corredor, sem a integração física, operacional e tarifária que são imprescindíveis e que oferecem benefícios. A infraestrutura é importante, sem dúvida, mas é fundamental que a viagem seja qualificada como um todo. A culpa não é do BRT, mas de não ter sido implantado no total. Não foi uma escolha equivocada. O sistema BRT é uma boa solução técnica, de maior capacidade de demanda com custo baixo”, ensina.

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SEM ATENÇÃO Ainda incompleto, BRT tem inúmeros problemas - BOBBY FABISAK/ACERVO JC IMAGEM
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Estação elevada do BRT Leste-Oeste, no Recife, que nunca foi concluída - FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM
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Sistema BRT foi destruído em Pernambuco e resgate virou obrigação moral para futuro governador - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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As paradas de ônibus do BRT Norte-Sul, na PE-15, em Olinda, estão sem nenhuma manutenção, após serem abandonadas pelo poder público, com seguidos casos de depredação e roubos. - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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As paradas de ônibus do BRT Norte-Sul, na PE-15, em Olinda, estão sem nenhuma manutenção, após serem abandonadas pelo poder público, com seguidos casos de depredação e roubos. - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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As paradas de ônibus do BRT Norte-Sul, na PE-15, em Olinda, estão sem nenhuma manutenção, após serem abandonadas pelo poder público, com seguidos casos de depredação e roubos. - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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As paradas de ônibus do BRT Norte-Sul, na PE-15, em Olinda, estão sem nenhuma manutenção, após serem abandonadas pelo poder público, com seguidos casos de depredação e roubos. - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
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Estações do BRT foram totalmente destruídas durante a pandemia. Governo já gastou quase R$ 10 milhões para recuperá-las - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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Corredor de BRTNorte-Sul, no Recife, totalmente vandalizado - BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM
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Equipamentos foram praticamente destruídos entre junho e julho de 2020, apesar de estarem sob proteção da Polícia Militar - BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM
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Estações do BRT foram totalmente destruídas durante a pandemia. Governo já gastou quase R$ 10 milhões para recuperá-las - BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM
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Estações do BRT foram totalmente destruídas durante a pandemia. Governo já gastou quase R$ 10 milhões para recuperá-las - BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM
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Os equipamentos foram praticamente destruídos internamente entre junho e julho de 2020, apesar de estarem sob proteção da Polícia Militar de Pernambuco, via convênio firmado com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado (Seduh) - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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Sistema BRT foi destruído em Pernambuco e resgate virou obrigação moral para futuro governador - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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Situação de abandono dos BRTs de Recife - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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Situação de abandono dos BRTs de Recife - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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Situação de abandono dos BRTs de Recife - FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM

Quem opera os sistemas também sofre com o abandono e a falta de políticas públicas. “O BRT é um sistema, é muito mais do que o veículo. E está precisando avançar. Se seguir o conceito BRT, estaremos no caminho certo. Por isso apostamos na nova gestão privada das estações para reverter essa situação. Precisamos que ele ganhe prioridade viária em todo o percurso, tenha tecnologia para comunicação com o passageiro e a manutenção adequada das estações”, afirma Djalma Dutra, diretor executivo do MobiBrasil.

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