COLUNA MOBILIDADE

Novas lições do julgamento da "Tragédia da Tamarineira": fingimos que educamos nossos jovens condutores

Educação de trânsito no Brasil é insuficiente, pontual e não alcança os jovens, que são os futuros motoristas

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Roberta Soares

Publicado em 16/03/2022 às 18:13 | Atualizado em 21/03/2022 às 13:15
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* Matéria atualizada com dados da Senatran e CTTU em 18/3/22

Os alertas sobre a responsabilidade de quem conduz um veículo motorizado - evidenciados no julgamento da chamada “Tragédia da Tamarineira”, que acontece há dois dias na 1ª Vara do Tribunal do Júri do Recife  - revelam outro fenômeno comum ao setor de trânsito e que nunca foi encarado no Brasil: não conseguimos educar nossos jovens da forma correta sobre os perigos de dirigir e, principalmente, alcançá-los na fase em que são pré-condutores de veículos.

Ou seja, na juventude. Para quem não sabe, 30% dos mortos e feridos no trânsito brasileiro são jovens entre 17 e 24 anos.

Lições do julgamento da "Tragédia da Tamarineira", colisão provocada por um motorista bêbado que deixou três mortos no Recife

Acompanhe o segundo dia de julgamento do acusado da colisão que matou três pessoas na Tamarineira

Homem que provocou colisão e deixou três mortos na Tamarineira se desespera em julgamento: ''me mate, me mate''

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O motorista João Victor Ribeiro estava bêbado quando colidiu contra o veículo da família de Miguel da Motta - Guga Matos/JC Imagem
Guga Matos/JC Imagem
O motorista João Victor Ribeiro, que estava totalmente bêbado quando colidiu contra o veículo da família de Miguel da Motta. Desenvolvia 108 km/h e avançou o semáforo depois de 22 segundos de vermelho - Guga Matos/JC Imagem

Em primeiro lugar, e com todo o respeito aos esforçados profissionais da área no Brasil, a educação de trânsito no País é uma hipocrisia. Fingimos que educamos nossos jovens motoristas e nossos jovens motoristas fingem que foram educados antes de assumirem a direção de veículos nas ruas.

E ninguém muda isso.

Avançamos pontualmente e jogamos luz ao tema em datas que, ano após ano, vão surgindo. Há alguns anos, era a Semana Nacional do Trânsito, comemorada uma única vez, em setembro.

Depois, ampliamos para todo o mês, criando o mês da mobilidade. Posteriormente, adotamos o Maio Amarelo, movimento que - é importante destacar - tem ganhado uma relevância importante no País.

Mas não passamos disso. De datas simbólicas nas quais são realizadas ações lúdicas e que merecem todo o respeito e deferência, sem dúvida. Mas a periculosidade do trânsito e todo o estrago que o desrespeito às leis de circulação podem provocar - que ficaram mais do que evidentes no julgamento do jovem motorista João Victor Ribeiro - precisam de muito, muito mais.

Em dinheiro, são R$ 500 milhões por ano e para todo o País (confira os dados no fim do texto).

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Miguel da Motta, que perdeu a mulher, o filho de 3 anos, a babá e ficou com a filha, hoje com 9 anos, com sequelas graves - Guga Matos/JC Imagem

Não registramos, sequer, os sinistros de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se diz. Entenda a razão)Pelo menos não de forma padronizada e nacionalmente. Somente a PRF tem registros e, mesmo assim, apenas nas rodovias federais.

O trânsito brasileiro mata mais de 30 mil pessoas e mutila outras 500 mil por ano - já matou 45 mil em 2014 - e só fechamos esses dados dois anos depois do ano dos sinistros.

Subjetivamos os dados para, assim, camuflarmos a dura realidade.

Não geramos uma estatística confiável, o que nos impede de atuar de forma eficiente nos locais mais perigosos e da forma mais efetiva.

O Brasil brinca de educar no trânsito. No máximo, a educação de trânsito chega às crianças e aos pré-adolescentes, estando um pouco presente no Ensino Infantil e Fundamental. O que não deixa de ser importante. Mas não passa disso.

Só que a segurança viária - principalmente nos excessos que temos visto tão bem detalhados no Júri da Tamarineira - é assunto de gente grande. É na idade em que começa a beber, que está totalmente dependente do celular, que o jovem mais precisa dos alertas sobre a responsabilidade que é conduzir um veículo motorizado.

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Segundo dia do julgamento do caso da Tamarineira no Fórum do Recife, na Ilha Joana Bezerra, área central do Recife - Guga Matos/JC Imagem

E ele não o tem. O hiato deixado entre as atividades lúdicas da infância e pré-adolescência e a idade que antecede a retirada da primeira habilitação é grande e compromete o aprendizado. E, muitas vezes, a “má” influência da impetuosidade juvenil, vinda dos amigos, pode complicar ainda mais.

E como consequência, toda a responsabilidade é jogada para os Centros de Formação de Condutores (CFCs) e as avaliações - limitadas e pontuais - dos Departamentos Estaduais de Trânsito (Detrans), com as provas teóricas e práticas para aquisição da CNH.

Quem conduz veículos sabe que é pouco. É muito pouco.

Não deveria ser assim e há legislação que confirma isso. O Artigo 76 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) diz que a Educação para o Trânsito deve acontecer desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, “por meio de planejamento e ações coordenadas entre os órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito e de Educação, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, nas respectivas áreas de atuação”.

Além disso, 5% de toda multa vai para o Funset - Fundo Nacional de Segurança para o Trânsito, mas poucas campanhas educativas que chamam atenção são vistas no País.

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O motorista João Victor Ribeiro, que estava totalmente bêbado quando colidiu contra o veículo da família de Miguel da Motta. Desenvolvia 108 km/h e avançou o semáforo depois de 22 segundos de vermelho - Guga Matos/JC Imagem
Guga Matos/JC Imagem
O motorista João Victor Ribeiro, que estava totalmente bêbado quando colidiu contra o veículo da família de Miguel da Motta. Desenvolvia 108 km/h e avançou o semáforo depois de 22 segundos de vermelho - Guga Matos/JC Imagem
GUGA MATOS / JC IMAGEM
Julgamento no Recife do motorista responsável pela colisão que deixou três pessoas mortas na Tamarineira, em 2017 - GUGA MATOS / JC IMAGEM

“A educação para o trânsito é uma condição “Sine Qua Non” (sem a qual não) para segurança viária, mas ela ainda é muito pontual no Brasil. É vista nos CFCs, durante a primeira habilitação, e em datas simbólicas, como o Movimento Maio Amarelo e a Semana Nacional do Trânsito. É necessário ir além. Estabelecer medidas para que as ações sejam mais eficientes, fazendo com que os nossos jovens e crianças aprendam desde cedo que as consequências de um sinistro de trânsito vão além das multas, chegam à perda da integridade física e da vida, ou seja, as ações devem focar cada vez mais além da simples informação, conscientizando para que ações perigosas não sejam praticadas na ausência da fiscalização, por medo das consequências naturais e não apenas das consequências no bolso”, alerta Emanoel Silva, especialista em trânsito e observador certificado do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), entidade que luta para reduzir as mortes no trânsito.

Para finalizar, vale lembrar que o trânsito brasileiro mata muito, mutila demais e ainda custa R$ 132 bilhões por ano à sociedade brasileira, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Em Pernambuco, o custo com as vítimas de trânsito é de R$ 6 bilhões, o equivalente a 4,8% do gasto nacional. Desse total, R$ 1,2 bilhão gastos com pedestres, R$ 3 bilhões com motociclistas e R$ 1 bilhão com ocupantes de automóveis.

INVESTIMENTOS NACIONAIS

Nacionalmente, o governo federal também afirmou que investe na educação de trânsito. Confira as respostas enviadas pela Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), antigo Denatran:

JC - Quanto destinamos por ano ou, ao menos, em 2021, para ações de educação de trânsito no País

2021 - R$ 505.252,61
- R$ 53.792,00 para divulgação do Prêmio Denatran
- R$ 451.460,61 para realização do curso digital "Visão Zero".

Ressaltamos que todo o trabalho é feito em rede, por meio do Sistema Nacional de Trânsito (SNT), com participação e orçamento dos órgãos locais de trânsito.

JC - Quanto enviado ao Funset?

2017 - R$ 456.023.539,01
2018 - R$ 568.765.246,93
2019 - R$ 648.180.417,08
2020 - R$ 433.683.506,67
2021 - R$ 477.934.962,65

Foto: Felipe Ribeiro/ JC Imagem
Caso aconteceu em 2017 e deixou três mortos e três feridos. Réu está sendo julgado por triplo homicídio doloso e qualificado, além de dupla tentativa de homicídio - Foto: Felipe Ribeiro/ JC Imagem
Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem
O MPPE ainda se manifestou a favor da manutenção da prisão preventiva de João Victor Ribeiro de Oliveira Leal - Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem
Foto: Diego Nigro/ JC Imagem
A informação de que a mulher estaria aprendendo a dirigir, sentada no colo do PM, foi repassada à Polícia Civil por diversas testemunhas do sinistro de trânsito - Foto: Diego Nigro/ JC Imagem


JC - E quanto ou quais ações feitas nas escolas, mas pontualmente, no Ensino Médio, que atinge o pré-condutor de veículos.

Atualmente as ações voltadas ao ensino básico, fundamental e médio ocorrem com parcerias com a Fundacion Mapfre, por meio do Programa Educação Viária e Vital, e com o Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), por meio do Programa Educa.

O Educação Viária é Vital incentiva ações que tornem a circulação mais segura e eficiente, promovendo a mobilidade segura, saudável e sustentável. A ideia é promover condições de um deslocamento seguro, de maneira que as crianças e adolescentes comecem, desde cedo, a adquirir hábitos que contribuirão para a formação de cidadãos mais conscientes, seguros, informados e respeitosos em relação à segurança viária e à própria vida.

Já o Programa Educa trabalha a educação para o trânsito com o objetivo maior de preservar vidas, alicerçado na legislação brasileira e totalmente alinhado com a Base Nacional Comum Curricular da Educação (BNCC) para formar cidadãos que contribuam com uma melhoria contínua e um transitar mais seguro, reduzindo o número de acidentes no país.

Além disso, ações voltadas para educação no trânsito para o Ensino Médio estão previstas no Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans).

EDUCAÇÃO DE TRÂNSITO RECIFE

A Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU) diz que investe, sim, em educação de trânsito. E que vem tendo como foco maior o combate aos principais fatores de riscos destacados pela Organização Mundial da Saúde (OMS): excesso de velocidade, bebida e direção, afivelamento incorreto ou não uso do capacete e do cinto de segurança.

Confira:

“Apenas em 2021, foram investidos R$ 1,2 milhão em verbas da própria Prefeitura do Recife e da CTTU, além do apoio técnico da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global (BIRGS), que aposta no Recife como uma cidade que tem competência e vontade política para diminuir as mortes no trânsito.

Foto: Filipe Jordão/JC Imagem
- Foto: Filipe Jordão/JC Imagem
Reprodução
Roseane estava grávida de três meses e morreu no local do acidente junto com a patroa e filho dela - Reprodução
Foto: Diego Nigro / JC Imagem
A missa será celebrada às 19h30, nas Graças, Zona Norte do Recife - Foto: Diego Nigro / JC Imagem

Durante o ano de 2021, a Prefeitura do Recife realizou uma campanha de mídia de massa utilizando canais impressos e de televisão para alcançar condutores com a mensagem sobre a importância do respeito à velocidade regulamentada na via. Além disso, agentes de trânsito alcançaram mais de 6 mil motociclistas em blitze educativas e o Programa Orientadores de Trânsito atua, diariamente, nas ruas auxiliando os cidadãos e instruindo sobre condutas de mobilidade seguras.

A CTTU atuou, ainda, com materiais educativos distribuídos nas ruas e com cursos para motociclistas e ciclistas de aplicativos, tratando temas como direção defensiva e primeiros socorros. O órgão realizou, também, distribuição de equipamentos de segurança para esse público. Nas escolas, os estudantes dos ensinos infantil, fundamental e médio receberam artistas educadores em períodos como a Volta às Aulas, o Maio Amarelo, a Semana de Mobilidade e o Dia das Crianças. Apenas na Volta às Aulas de 2022, mais de 4.500 estudantes foram alcançados.

O Programa de Educação para o Trânsito do Recife atua de forma alinhada aos demais pilares - engenharia de trânsito, fiscalização e gestão de dados - e destina os recursos para a maior necessidade. Em 2021, foi lançado o Programa Piloto Seguro, focado nos motociclistas, que foram identificados como os principais usuários contributivos (15,3% dos casos), de acordo com o Comitê Municipal de Acidentes de Trânsito (Compat) e as principais vítimas feridas (70%), de acordo com o Relatório Anual de Segurança Viária do Recife em 2020”. 

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