Impunidade ainda predomina nos casos de crimes de trânsito
Ainda são muitos os casos em que a figura do Estado não fez o papel de cuidador como determina a legislação brasileira
Apesar das lições que o julgamento da Tragédia da Tamarineira deixaram e da importância ao atrair a atenção do Brasil para o caso, a impunidade ainda predomina nos crimes de trânsito.
Muitos crimes de trânsito esperam punições como a da Tragédia da Tamarineira
Ainda são muitos, muitos os casos em que a figura do Estado não fez o papel de cuidador como determina a legislação brasileira. Ou que não o fará, como já dá para perceber diante do andamento de diversas investigações e processos tanto em Pernambuco como no Brasil.
Vamos relembrar alguns desses casos, que fizeram e fazem história pela violência, demora e impunidade que os cercam:
ATROPELAMENTO COLETIVO
Esse caso ainda segue sendo investigado, segundo as últimas informações. Cinco pessoas da mesma família foram atropeladas, enquanto bebiam e conversavam na calçada, em frente a uma lanchonete, na Iputinga, na Zona Oeste do Recife. O atropelamento resultou na morte do sargento reformado da PM João Batista Ferreira da Silva, 56 anos, no dia 12/11/2021.
O condutor que provocou a colisão é o PM Rodrigo Luiz da Silva, 36, que estaria dirigindo alcoolizado e ensinando uma mulher a dirigir (Rayana de Lima Alves, de idade não informada). No momento do sinistro de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se diz. Entenda a razão), inclusive, a passageira estaria no colo dele. O caso ainda está sendo investigado pela Polícia Civil.
CICLISTA MORTO EM VÃO
O promotor de vendas Flávio Antônio, 42 anos, que todos os dias pedalava para o trabalho pela Avenida Caxangá, na Zona Oeste do Recife, foi atropelado por um motorista que, pela destruição do carro e violência do impacto contra a vítima, estava em alta velocidade.
Tragédia da Tamarineira: matar no trânsito não é mais brincadeira. Punição ganha nova face
O caso aconteceu no dia 3/11/2021, no bairro da Várzea. Um mês depois, o caso foi encerrado pela Polícia Civil e o motorista da caminhonete Hilux que atropelou o ciclista indiciado por homicídio culposo, ou seja, sem intenção.
Apesar de testemunhas afirmarem que o veículo era conduzido em alta velocidade, a Polícia Civil de Pernambuco não conseguiu comprovar o excesso de velocidade ou um possível consumo de álcool, já que o condutor foi socorrido com ferimentos leves e não fez teste de alcoolemia.
REVOLTA NACIONAL
O atropelamento da socióloga Marina Kohler Harkot, de 28 anos, pesquisadora e cicloativista atuante, na madrugada do domingo (8/11/2020), enquanto pedalava em Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, gerou uma revolta nacional. Marina foi pega por trás por um condutor que sequer parou para socorrê-la.
Querida e respeitada no mundo da ciclomobilidade e da mobilidade sustentável como um todo, colocou mais uma vez em evidência a lógica injusta do planejamento das cidades - na qual o automóvel é prioridade em tudo e sobre todos.
O empresário José Maria da Costa Júnior, de 33 anos, identificado como o suspeito do crime, se apresentou à polícia paulistana dois dias após o atropelamento, mas não foi preso por estar na semana eleitoral, quando apenas as prisões em flagrante podem ser efetuadas. Marina Harkot lutava pela ampliação da ciclomobilidade em São Paulo e no Brasil e pelo direito das mulheres pedalarem com segurança.
O Ministério Público de São Paulo denunciou o empresário por atropelar e matar a cicloativista. A promotoria entendeu que houve um homicídio qualificado (com dolo eventual), agravado pelo fato de o condutor ter fugido do local sem prestar socorro e estar sob efeito de álcool. A expectativa é de que a decisão sobre o julgamento - num Tribunal do Júri ou não - saia entre 15 dias e um mês.
UM CRIME SEM CULPADOS
Quem vê as imagens do atropelamento do engenheiro eletricista Hélio Almeida Araújo, 64 anos, ciclista por opção e devoção, ainda se impressiona com a estupidez e violência do ato em Santo Amaro, área central do Recife, em 2017. A impressão é de que o motorista do veículo Fiesta prata, não se sabe por qual razão, sequer percebeu a bicicleta à sua frente. Passa por cima do engenheiro, sumindo em seguida. E o caso permanece sem identificação até hoje.
De tão forte, a pancada que surpreende Hélio Almeida e o derruba da bicicleta com facilidade também provoca o deslocamento do cérebro do engenheiro, decretando sua morte horas depois. O crime já caiu no esquecimento do Estado. O culpado (ou seria culpada?) segue sem identificação. Impune e livre. A Polícia Civil diz que tentou de todas as formas identificar o autor, mas não conseguiu.
ESMAGADOS SOBRE A CALÇADA
Outro caso de morte no trânsito que coleciona episódios de impunidade é o atropelamento do casal de amigos Isabela Cristina de Lima, 26 anos, e Adriano Francisco dos Santos, 19, esmagados quando estavam na porta de casa, numa comunidade às margens da Avenida Desembargador José Neves (Canal do Jordão), em Boa Viagem, Zona Sul do Recife, pelo empresário Pedro Henrique Machado Villacorta, 28 anos, que estava alcoolizado no dia do atropelamento e tinha um histórico de fazer vergonha como condutor: acumulava em 2016, época da colisão, 116 pontos na CNH resultantes de 27 multas registradas entre 2012 e 2016.
O empresário foi retirado do local pela PM e levado, mesmo sem ferimentos, para atendimento na UPA da Imbiribeira, no lugar de ser encaminhado à delegacia de polícia. Está livre até hoje. Villacorta, inclusive, por pouco não escapa do julgamento por homicídio doloso. O juiz do caso desclassificou o crime para culposo, mesmo o MPPE tendo denunciado por dolo eventual. Mas, em 2017, o TJPE manteve a denúncia dos promotores. A expectativa agora é para o julgamento no Tribunal do Júri.
ATROPELADO NA FAIXA DE PEDESTRES
Sebastião Tenório, 53 anos, bicicleteiro desses que resolvem tudo de bike, foi morto no dia 11 de março de 2017, em Casa Caiada, Olinda, na Região Metropolitana do Recife. Atravessava a faixa de pedestres quando foi pego por um carro. Desmontou da bicicleta e a empurrava ao lado do corpo, como devem fazer os ciclistas – pelo menos segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Tanto cuidado de nada adiantou. Já estava no meio da travessia, segundo uma testemunha, quando a morte o arrastou. Morreu na hora.
A bicicleta voou para um lado, ele poucos metros à frente. Antes, uma freada brusca, como um prenúncio da violência seguinte, comum nas mortes no trânsito. O condutor do veículo Gol que atropelou Sebastião abandonou o automóvel e fugiu. Retornou depois de algum tempo. Afirmou à polícia que saiu por temer ser agredido diante da cena. Foi responsabilizado pelo crime de homicídio culposo.
ARRASTADO POR 50 METROS
No início de 2019, o ciclista e auxiliar de cozinha César Filipe Gomes da Silva, 30 anos, foi atropelado, arrastado por 50 metros e morto enquanto pedalava na Ponte João Paulo II, que compõe o chamado Viaduto Joana Bezerra, na Ilha do Leite, área central do Recife. O réu confesso é o empresário do ramo de eventos Hélio Mendonça, 33, que dirigia uma caminhonete e sequer parou para prestar socorro aos ciclistas – César Filipe pedalava com outros dois amigos e um deles ficou ferido.
O empresário só se apresentou à polícia porque foi identificado, trafegando aparentemente em alta velocidade, pelas câmeras da CTTU. Prestou depoimento, garantiu que não tinha bebido – embora integre uma banda musical e tenha passado a noite numa festa open bar – e que não tinha visto o trio pedalando no viaduto. Foi indiciado por homicídio culposo porque a Polícia Civil não conseguiu comprovar a alta velocidade evidenciada nas imagens nem um possível consumo de álcool.
EXEMPLO DE IMPUNIDADE
A morte da auxiliar de enfermagem Aurinete Gomes de Lima, 33 anos, em 2008, um dos casos de maior repercussão no Recife, é a confirmação de que a punição para os crimes no trânsito são mais comuns quando as vítimas têm recursos financeiros.
Aurinete morreu na hora, o marido Wellington Lopes e a filha, que na época tinha seis anos, ficaram gravemente feridos quando o carro em que estavam foi praticamente destruído pela caminhonete dirigida pelo empresário Alisson Jerrar Zacarias dos Santos, após avançar um semáforo da Avenida Domingos Ferreira, em Boa Viagem, Zona Sul da capital pernambucana.
O condutor estava a mais de 100 km/h e alcoolizado. Tinha virado a madrugada numa boate. Em 2014, onze anos depois do crime e tendo passado todo o tempo livre, Jerrar foi condenado a oito anos de prisão, mas em regime semiaberto. Até hoje não passou uma única noite na prisão e segue levando uma vida normal.
(*) Com informações da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) e da Polícia Civil de Pernambuco.