Transporte público em crise: invasões de ônibus e estações de BRT viraram desmoralização no transporte público do Grande Recife
O chamado 'surf nos ônibus' é mais uma consequência dessa desmoralização que tem cercado o sistema de transporte público do Grande Recife
A evasão de receita provocada pelas invasões do sistema de transporte público da Região Metropolitana do Recife virou um problema moral. Chegou a um nível de descontrole tão alto, que o impacto no setor está indo muito além da perda financeira. Virou desmoralização.
É um dos graves desafios do sistema de ônibus, sendo flagrante nos coletivos e nas estações dos dois únicos corredores pernambucanos do sistema BRT: o Leste-Oeste, que conecta o Centro do Recife com a Zona Oeste da RMR, e o Norte-Sul, que faz a conexão com a Zona Norte do Grande Recife.
É duro de dizer, mas, atualmente, tem pago passagem nos ônibus da Região Metropolitana do Recife quem quer ou tem coragem de pular os bloqueios dos ônibus, entrar pela porta traseira ou invadir as estações de BRT, eternamente abertas porque estão há mais de cinco anos sem refrigeração e o sistema de bloqueio vive quebrado.
Ou seja, a ausência de segurança policial, patrimonial e de fiscalização tem deixado o sistema de transporte público exposto. E, pelo menos atualmente, os ônibus têm sofrido mais com as invasões do que o Metrô do Recife, por exemplo.
O metrô, na verdade, conseguiu reduzir bastante o problema com a implantação da integração temporal nos bloqueios dos terminais integrados com o sistema de ônibus.
“É assustador quando estamos no ônibus e vemos as pessoas pulando a catraca e isso tem sido cada vez mais comum. Na maioria das vezes, já associamos a marginais e pensamos em assalto. Fica todo mundo tenso, motoristas e passageiros. A vontade é descer e não voltar mais”, desabafa a dona de casa Maria Aparecida Santos, que usa o transporte público quase diariamente.
‘SURF NOS ÔNIBUS’ EXPLODIU DEVIDO AO ABANDONO DO TRANSPORTE PÚBLICO NO GRANDE RECIFE
A desmoralização que o transporte público tem vivido na Região Metropolitana do Recife estimulou um outro problema que já existia no sistema, mas até então era restrito a poucos bairros da periferia do Grande Recife: o chamado ‘surf nos ônibus”, que ganhou os principais corredores viários da capital, com mutilações e até mortes de crianças e adolescentes, os principais praticantes do ato de vandalismo.
Quem já presenciou a prática da mazela que tem desmoralizado o transporte por ônibus do Grande Recife não esquece jamais. As cenas são definidas como angustiantes pelos passageiros.
“Vivi uma situação dessas uma vez e espero não viver nunca mais. Acho que se acontecer de novo eu desço do coletivo e perco a passagem. É melhor. A situação é muito perigosa. Se o motorista pára o ônibus, eles ficam revoltados e agridem. Se não parar, o medo é que aconteça uma queda ou atropelamento. É angustiante”, relata a vendedora Cláudia Santos, que todos os dias usa o transporte público para chegar ao Centro do Recife.
Um projeto de lei polêmico porque transferia a responsabilidade que deveria ser do Estado para motoristas e operadores foi aprovado na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), mas terminou vetado pelo governo estadual devido à inconstitucionalidade e à repercussão negativa que gerou. Desde então, o ‘surf nos ônibus’ segue sendo praticado livremente no sistema.
CATRACAS ELEVADAS E BLOQUEIOS NA PORTA TRASEIRA
Na tentativa de moralizar o sistema e inibir as invasões, o sistema de ônibus começou a testar catracas elevadas com a validação do Grande Recife Consórcio de Transporte Metropolitano (CTM) e do Ministério Público de Pernambuco (MPPE). Mas, depois de um curto período de teste, uma passageira ficou com a cabeça presa no equipamento e os testes foram suspensos.
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A determinação foi para que as catracas elevadas fossem adequadas às regras de segurança e conforto determinadas pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), mas não se falou mais no assunto.
“A evasão de receita provocada pelas invasões dos coletivos pela porta traseira e pelos pulos de catraca desmoraliza o sistema e gera um ambiente de insegurança no ônibus. Isso compromete duplamente o sistema porque afasta o usuário e gera a perda de receita”, critica um especialista.
Segundo operadores ouvidos pelo JC, existem exemplos no País que poderiam ser seguidos pelo governo de Pernambuco para combater as invasões. É o caso do VLT Carioca e do Programa BRT Seguro, do Rio de Janeiro, que têm legislações específicas para multar quem usa o transporte público sem pagar. A avaliação é de que não adianta apenas ações educativas e de sensibilização. É preciso força de polícia.
“Chegamos a apresentar ao Estado um projeto integrado de combate à evasão que prevê, dentre outras ações, sensibilização, fiscalização física e remota e policiamento integrado ao Centro de Controle Operacional que atende às estações BRT e terminais. Também mostramos a necessidade da criação de legislação específica para o combate à evasão no transporte público, como já é praticado nos principais sistemas de transporte no mundo e também no Brasil, a exemplo do VLT Carioca e do programa BRT Seguro do Rio de Janeiro”, afirma a Urbana-PE, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Pernambuco.
O entendimento é de que é preciso agir em várias frentes ao mesmo tempo: legislação, barreiras físicas (catracas elevadas), fiscalização, força policial e sensibilização. “Somente duas operadoras do sistema, a Caxangá e a Empresa Metropolitana, registraram evasões de receita nas principais linhas que representaram 10% da receita”, reforça a Urbana-PE.
NO RIO DE JANEIRO, INVASÕES GERAM MULTA E ATÉ PRISÃO
Combater as invasões do sistema é possível e o Rio de Janeiro tem mostrado isso. É claro que ainda há flagrantes de ‘calotes’, mas a criação de uma legislação própria e o investimento na fiscalização dessas leis têm surtido efeito.
No Rio, a multa para quem não pagar a tarifa do VLT Carioca, que corta parte do Centro e faz conexões com o Aeroporto Santos Dumont e a rodoviária, é de R$ 170, subindo para R$ 255 em caso de reincidência.
A fiscalização é feita pela operadora do sistema, que determina a sanção, aplicada pelo poder público. No VLT Carioca, o pagamento da tarifa é espontâneo e não existem catracas ou cobradores. Durante as viagens, os fiscais, com apoio da Guarda Municipal, entram nas composições e abordam os passageiros.
PROGRAMA BRT SEGURO
Além da legislação que multa quem não paga a tarifa do VLT Carioca, o Rio também criou outra forma de punir quem invade ou depreda o transporte público.
Depois de ressuscitar o sistema BRT, que chegou ao fundo do poço com o completo sucateamento da frota e das estações e até sofrer uma intervenção pública, a Prefeitura do Rio de Janeiro criou o Programa BRT Seguro, que fiscaliza e pune os atos de vandalismo no sistema.
Tendo como principal garoto-propaganda o prefeito carioca, Eduardo Paes (PSD), o programa, segundo dados da Prefeitura do Rio, tem números que mostram estar dando certo. Em junho de 2024, após três anos de atuação, o programa tinha realizado 3.400 prisões por crimes como roubo, furto, vandalismo e importunação sexual nas estações do BRT da cidade.
REDUÇÃO DE 90% NOS REPAROS E MULTAS POR CALOTE
O BRT Seguro também realiza patrulhamento contra assaltos, vandalismo e calotes no sistema de BRT, tendo conseguido, segundo a prefeitura, reduzir em 90% os gastos com reparos de equipamentos — estações e articulados — nesse período.
Para isso, tem um diferencial contra a impunidade: legislação municipal que dá base às multas aplicadas a passageiros por calotes - algo que muitas cidades não têm, como a Região Metropolitana do Recife, por exemplo.
Os números mostraram que os agentes aplicaram 17.800 multas em passageiros que tentavam dar o calote para não pagar a passagem no Sistema BRT. No total, 140 estações e os 12 terminais do sistema BRT são monitorados 24 horas por 2.100 câmeras da Mobi-Rio e a qualquer indício de atividade suspeita ou fora do padrão, os agentes do BRT Seguro são acionados para verificar a ocorrência.