PROCESSO

Juiz que condenou Sarí pede investigação contra família de Miguel por maus-tratos e humilhação contra a criança

Pedido feito pelo juiz José Renato Bizerra consta na sentença que condenou Sarí, ex-patroa da mãe de Miguel, a 8 anos e seis meses de prisão. Ele pede que mãe e avó de Miguel sejam investigados por cárcere privado, humilhação e maus-tratos

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Raphael Guerra

Publicado em 17/06/2022 às 12:29 | Atualizado em 17/06/2022 às 18:08
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O juiz José Renato Bizerra, da Primeira Vara dos Crimes Contra a Criança e o Adolescente, solicitou que a polícia ou o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) investiguem a mãe e a avó de Miguel Otávio Santana, 5 anos, por indícios de maus-tratos, humilhação e cárcere privado contra a criança.

O juiz José Renato Bizerra é o mesmo que condenou Sarí Mariana Costa Gaspar Corte Real a oito anos e seis meses de prisão pelo crime de abandono de incapaz com resultado morte de Miguel. A sentença foi proferida no final de maio de 2022.

Sarí Corte Real estava tomando conta de Miguel, na casa dela, no Recife, quando o menino saiu e pegou o elevador sozinho. 

Miguel morreu ao se debruçar na área onde ficam os ar-condicionados do prédio onde Sarí mora, no bairro de São José, e cair. Ele estava procurando a mãe, Mirtes, que tinha saído de casa para passear com o cachorro de Sarí. A morte foi em junho de 2020. 

O pedido de investigação contra Mirtes Renata Santana, mãe de Miguel, e Marta Maria Santana, avó do menino, foi feito na sentença proferida pelo juiz. O magistrado afirma, baseado em depoimentos de testemunhas de defesa de Sarí, que Miguel era torturado, sofria maus-tratos e preconceito racial

Ainda segundo a sentença do juiz José Renato Bizerra, uma testemunha relatou que a avó do menino, Marta Maria Santana, chamava Miguel de "coisa preta" e de "desgraça" e já teria arremessado contra Miguel pedras e pau de vassoura.

"Um promotor de Justiça, um delegado de polícia, um defensor público, alguma autoridade que tiver competência, deve debruçar-se sobre os autos, apurar nos testemunhos os indícios de tortura, de conivência com a tortura, de maus tratos, de racismo, de cárcere privado, os atos em tese praticados contra Miguel, ele ainda estava vivo", diz um trecho da sentença.

"A morte de Miguel, apurou-a este processo, os outros crimes praticados a ele em tese, restam ser investigados. O Ministério Público, o defensor público, sejam estes intimados", escreve, na sentença, o magistrado.

Importante reforçar que o pedido de apuração feito pelo juiz não tem qualquer relação com o processo da morte de Miguel, como ele bem cita. É uma investigação a parte e que, independente do resultado, não altera a sentença atribuída a Sarí Corte Real pelo crime de abandono de incapaz com resultado morte.

O pedido feito pelo juiz foi baseado nos depoimentos de três testemunhas de defesa de Sarí (duas empregadas domésticas e uma manicure). Uma delas foi Rosineide Maria Gomes, que trabalhava na casa de Sarí em Tamandaré, Litoral Sul de Pernambuco. Sérgio Hacker, marido de Sarí, era o prefeito da cidade.

A testemunha relatou, em audiência de instrução e julgamento, que Marta Maria Santana, avó materna de Miguel, certa vez teria o arrastado pelo braço para impedir que ele saísse com a mãe. Uma vizinha teria ameaçado chamar o Conselho Tutelar, diante da cena. 

"As palavras de dona Marta, avó de Miguel, no momento em que o repreendia eram 'vou te matar desgraça preta, tu és uma vergonha pra mim e a tua mãe, se eu pudesse eu te mandava pra morar com o teu pai porque eu não te aguento mais'", destacou o juiz em relação ao depoimento dados por Rosineide.

A testemunha contou ainda que já viu a avó correr atrás do menino e, uma vez, ainda teria jogado uma pedra contra ele - que não foi atingido. 

Luciene Raimundo Neves, outra testemunha de defesa da ré, contou que "a mãe dele lhe batia direto". Ela disse ainda que Mirtes Renata, mãe de Miguel, despia o menino e colocava ele dentro de um quarto para não saísse. 

Eliane da Silva Lopes, a manicure que estava na casa de Sarí no momento em que o menino caiu do nono andar do prédio de luxo no Recife, relatou que, naquele dia, “A mãe (Mirtes) pedia às crianças (Miguel e a filha de Sarí) para pararem de brincar entre elas, e, com o animal da casa, algumas vezes Mirtes ia lá e dava umas chineladas nele (Miguel)". 

"A tortura, os maus-tratos, os castigos, as chineladas, o sofrimento, as ameaças de ser entregue ao pai ausente, embora desejasse a mãe; o preconceito racial, a avó materna o chamara de coisa preta, de desgraça; vítima de manutenção em cárcere privado, nu, trancado no quarto da casa, sem receber roupas para não sair da casa", diz uma parte da sentença do juiz José Renato Bizerra.

A sentença continua: "O Conselho Tutelar da cidade de Tamandaré, os vizinhos o acionaram certa vez, ficaram constrangidos ante o trato dado à criança na casa onde Miguel estava na Praia de Tamandaré, a avó os constrangera".

"O prefeito da cidade, então cônjuge da acusada agiu, talvez impediu a atuação do Conselho, ele também se insurgiu à pedagogia da avó materna de Miguel. Está registrado no seu depoimento", diz ainda a sentença.

"Os autos registram também arremesso de pedra, de pau de vassoura, tudo contra a criança. Estas informações estão espalhadas nos depoimentos das testemunhas, do prefeito inclusive. O método pedagógico ou de correção empregado contra Miguel era o terror", destaca o magistrado no pedido de investigação.

O QUE DIZ A DEFESA DE MIRTES SOBRE OS MAUS-TRATOS

A advogada Maria Clara D'Ávila, responsável pela defesa de Mirtes Renata, se pronunciou sobre o pedido de investigação. "São acusações inverídicas que ferem a memória de Miguel e a honra de Mirtes e Marta. O juiz considerou apenas depoimentos de testemunhas de defesa de Sarí. Esses relatos não faziam parte do processo. Não houve produção de prova contrária, nem Mirtes foi ouvida para se defender. São depoimentos parciais. Não há outras testemunhas corroborando com os relatos", afirma.

"Esses depoimentos são mais uma tentativa da linha de defesa de transferir a responsabilidade da morte de Miguel para Mirtes e a avó dele. Da mesma forma como a defesa tentou 'adultizar' Miguel, como se ele fosse responsável pela morte. Isso também faz parte do racismo estrutural, porque é uma tentativa de criminalizar a forma de maternar adotada pelas mulheres negras", completa a advogada de Mirtes. 

SARÍ E SÉRGIO HACKER: CONIVÊNCIA COM TORTURA DE MIGUEL

Além do pedido de investigação em relação à mãe e à avó de Miguel, o juiz cita que houve "conivência com a tortura".

Isso porque as agressões descritas pelas testemunhas e atribuídas à avó e a mãe do menino ocorreram na casa de Sarí e Sérgio Hacker - tanto em Tamandaré quanto no Recife.

"A acusada, o seu cônjuge, não se insurgiram de modo eficaz em defesa da criança", cita o magistrado.

"Ante esse flagelo todo, não era possível se exigir a Miguel tranquilidade, educação, obediência à mãe, à acusada. Que obedecesse a dona Sarí, quando esta lhe pediu sair da cabine do elevador, mas ele lhe “deu a língua”, como o fez", argumenta o juiz.

"Entenda-se o seu gesto, de repúdio à vida que tivera, às pessoas que o cercavam, às agressões, às humilhações. A conclusão foi a exposta. O comportamento de Miguel resultou dos maus-tratos".

"A vida lhe os impusera. Diga-se duma vez, os seus familiares, e o ambiente dado pela acusada. A Miguel o forçaram a ser rebelde, e ele parece que aceitou. Devolveu rebeldia e desobediência", pontua o juiz.

O advogado de defesa de Sarí, Célio Avelino, disse que "caberia a Mirtes e Marta se pronunciarem sobre o pedido de investigação". 

O QUE DIZ O MINISTÉRIO PÚBLICO SOBRE OS MAUS-TRATOS

A coluna Ronda JC questionou o Ministério Público de Pernambuco sobre o pedido de investigação feito pelo juiz. A assessoria se pronunciou apenas por nota oficial.

"A 24ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital deu ciência dentro do processo e se manifestou por não ter atribuição para atuar na fase pré-processual, a qual está a cargo da Central de Inquéritos da Capital, razão pela qual se abstém de lançar juízo em face dos supostos crimes que estariam, em tese, noticiados em depoimentos de testemunhas', requerendo que sejam extraídas cópias dos aludidos depoimentos e da sentença em questão, com posterior remessa à Central de Inquéritos da Capital, para o devido conhecimento e consideração."

Em nota, na tarde desta sexta-feira (17), a assessoria do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) declarou que o" juiz do caso não poderia ter feito o encaminhamento imediatamente após os depoimentos que imputam prática criminal à mãe e avó materna, à ré e ao seu marido, pois as testemunhas ainda poderiam modificar seus depoimentos até antes da prolação da sentença".

A assessoria do TJPE declarou ainda que, "o magistrado, cumprindo seu dever legal, encaminhou para as autoridades públicas com competência investigatória para as devidas apurações, das quais pode resultar em uma confirmação indiciária dos depoimentos, e, como tal, passível de denúncia criminal, ou a ausência de qualquer elemento, o que poderia resultar em processo criminal contra as testemunhas que prestaram tais depoimentos. Tudo será apurado ao seu devido tempo por quem de direito".

CONDENAÇÃO DE SARÍ NO CASO MIGUEL

Na sentença que condenou Sarí Corte Real a oito anos e seis meses de prisão, o juiz afirmou que a acusada agiu movida por "motivo fútil".

O magistrado destacou que, ao abandonar a criança sozinha no elevador, Sarí voltou para fazer as unhas com a manicure que a aguardava em casa. Na ocasião, a mãe do menino, Mirtes Renata, passeava com o cachorro da patroa.

"Sobre os motivos do crime, o imediato foi a acusada Sari abandonar a criança para retornar à manicure, um motivo fútil, sentar-se à mesa, entregar uma mão àquela, ou a manicure tomar-lhe a mão, usando a acusada apenas uma para telefonar à mãe de Miguel, um comportamento inapropriado ante a urgência e a emergência do caso", disse.

A urgência a que o juiz se refere é o fato de Miguel ter ficado sozinho no elevador.

"O gesto da acusada lhe materializou o pensamento. Quando abandona o menor, o seu pensamento poderia ter a duração de um relâmpago, ser curta, mas é o bastante, o fim foi a queda e morte do menino."

Em outro trecho da decisão, o magistrado reforça que "Miguel pouco lhe importava". "Era só o filho da trabalhadora doméstica beneficiária das vantagens extras", criticou, na sentença que tem 31 páginas.

Miguel morreu após subir e cair do nono andar do prédio de luxo onde Sarí morava, na área central do Recife.

O juiz decidiu que a acusada deverá iniciar o cumprimento da pena em regime fechado. Entretanto, conforme previsto pelo artigo 387, parágrafo único, do Código de Processo Penal, Sarí Corte Real tem o direito de recorrer em liberdade.

A mãe de Miguel afirmou ter considerado o tempo de pena baixo e que iria recorrer. A defesa de Sarí também disse que iria recorrer por considerar que ela não deveria ter sido condenada.

RELEMBRE O CASO MIGUEL

Miguel morreu na tarde de 02 de junho de 2020. Depois de a mãe descer com o cachorro da patroa, o filho correu para pegar o elevador e ir atrás de Mirtes. Sarí chegou a ir até o garoto e conversou com ele.

Depois de algumas tentativas, ela apertou o botão da cobertura, antes de deixar a criança sozinha no elevador - segundo imagens de câmeras de segurança periciadas pelo Instituto de Criminalística.

Ao sair do equipamento, no nono andar, o menino passou por uma porta corta-fogo, que dá acesso a um corredor. No local, ele escala uma janela de 1,20 m de altura e chega a uma área onde ficam os condensadores de ar. É desse local que Miguel cai, de uma altura de 35 metros.

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