Pesquisador da Fiocruz Pernambuco e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o epidemiologista Rafael Moreira coordena um projeto cujo objetivo é identificar fatores sociodemográficos e econômicos associados ao óbito por covid-19, assim como o uso de medicamentos e as doenças preexistentes que podem estar relacionados à mortalidade pela infecção. Além disso, o trabalho vai avaliar como a resposta assistencial das UTIs pode ter ligação com o óbito. Nesta entrevista, ele frisa que a queda na ocupação dos leitos não deve ser vista como um passaporte para se sair de casa sem necessidade. “Temos que prevenir a infecção, e não expandir a resposta (oferta de leitos) sem cuidar da causa”, diz Rafael nesta entrevista à jornalista Cinthya Leite.
JORNAL DO COMMERCIO – Para algumas pessoas, a aparente estabilização de casos de covid-19 que observamos atualmente em Pernambuco, associada à retomada das atividades socioeconômicas, parece dar uma espécie de passaporte para sair de casa sem necessidade. Como avalia essa atual fase da epidemia no nosso Estado?
RAFAEL MOREIRA – Isso dá uma aparente sensação de segurança e tranquilidade. Parece que, ao ouvirem que os hospitais voltaram a ter vagas de UTI (unidade de terapia intensiva), pessoas acreditam que podem sair tranquilamente de casa porque, se pegarem covid-19, terão um leito à espera. Veja só que pensamento grave e que nos faz ver o quanto pode ter mudado os nossos parâmetros de severidade. Antes da pandemia, ninguém ficava feliz em ser internado numa UTI, ninguém ficava feliz por saber que tem uma UTI disponível. Hoje em dia, pode surgir até uma sensação de conforto por ter a chance de poder ser internado. Mas a UTI não é a salvação. A gente tem que prevenir a morte por coronavírus, prevenir a infecção por coronavírus, e não expandir a resposta (capacidade instalada de oferta de leitos) sem cuidar da causa.
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JC – Por falar em gravidade da infecção e na assistência hospitalar, gostaria que comentasse sobre um projeto que coordena para investigar fatores associados ao óbito pela covid-19.
RAFAEL MOREIRA – Algumas comorbidades (doenças preexistentes que podem ser fator de risco para o novo coronavírus mais relacionadas à morte) já estão bem estabelecidas na literatura (como maior risco de agravamento por covid-19). Entre elas, estão hipertensão arterial, diabetes, doenças respiratórias e neoplasias. Além delas, queremos ver se outros fatores podem estar associados ao óbito pela infecção, especialmente aqueles que estão mais associados com a assistência, como o tempo de espera por vaga em UTI e os protocolos (de tratamento) usados pelos hospitais. Será que há distinção entre eles? Talvez diferentes protocolos de uso de determinada medicação e de intervenção possam influenciar ou não (na mortalidade). Tudo isso faz parte desse nosso projeto, que conta com colaboração de outros pesquisadores.
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JC – Qual a sua avaliação sobre a questão dos métodos de diagnóstico para a covid-19?
RAFAEL MOREIRA – Atualmente não temos testagem em massa. É importante ter métodos diagnósticos mais sensíveis e que, ao mesmo tempo, sejam mais rápidos e baratos, a fim de alcançar maior parte da população. Participei de uma conferência online com um grupo da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, e vi um pesquisador que está desenvolvendo um aplicativo chamado Coughvid (junção de ‘cough’, tosse em inglês, com ‘covid’). Por meio de inteligência artificial, estão distinguindo o que é uma tosse de alguém infectado pelo novo coronavírus do que é uma tosse qualquer que não seja associada à covid-19. Nossos ouvidos não conseguem distinguir a tosse seca comum da tosse do coronavírus. Mas, por meio de inteligência artificial, existe uma frequência distinta entre quem está contaminado e quem não está. Então, é um método diagnóstico em que, ao tossir, o aplicativo faz a gravação, que é enviada para um banco de dados. Isso é um só um exemplo de diagnóstico rápido e barato que pode ajudar na busca por uma unidade de saúde. Esse teste também não pode ser tão sensível porque pode gerar uma preocupação ao dar um falso-positivo. A pessoa pensa que está doente, vai logo procurar um médico ou um posto de saúde e se contamina no local. Então, é melhor que o teste seja mais específico do que sensível. Ou seja, é melhor ser bom para descartar quem realmente não tem (covid-19) do que falar quem tem.
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JC – Acredita que virá uma segunda onda de covid-19?
RAFAEL MOREIRA – Nos países atingidos pela epidemia antes do Brasil, observamos que houve (um novo) aumento no número de casos e óbitos, embora discretos. Mas esses países vêm experimentando essas diferentes ondas que, embora não sejam fortes como a primeira, servem para nos alertar que o contágio permanece e que a transmissão comunitária ainda está presente. O Brasil ainda está na primeira onda, e muitos pesquisadores acham que não deveríamos flexibilizar a quarentena, pois estamos com a curva em ascensão, embora ela seja distinta entre os Estados brasileiros. Temos muitos Brasis em relação à epidemia, mas ainda não estamos numa descida muito evidente. Estamos num platô; às vezes desce, às vezes sobe. Estamos naquela oscilação do pico. Existe vontade de voltar ao trabalho, de o comércio voltar às suas atividades, mas esse desejo não pode ser maior do que o que mostram os dados epidemiológicos. Uma coisa é ter um desejo forte de que a pandemia acabe; outra coisa é o que a ciência nos mostra. A vontade de sair da quarentena não pode ser um movimento de negacionismo da ciência.
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