COLUNA JC SAÚDE E BEM-ESTAR

Episódios de crise de ansiedade coletiva são um grande pedido de socorro de estudantes a famílias, escolas e sociedade

Crises de ansiedade coletiva em escolas acende alerta para a fragilidade socioemocional de crianças e adolescentes que precisam urgentemente de apoio

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Cinthya Leite

Publicado em 22/05/2022 às 10:10 | Atualizado em 22/05/2022 às 10:17
Análise
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Lembro que, bem nos primeiros meses da crise sanitária provocada pela covid-19, chamou a minha atenção um projeto do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Coordenado pelo psiquiatra da Infância e Adolescência Guilherme V. Polanczyk, professor da USP, o trabalho já previa um cenário que hoje salta intensamente aos nossos olhos: o estresse provocado pelas restrições, a preocupação com a covid-19 e com a saúde de quem amamos, entre outros problemas, acabaram levando a um aumento dos sintomas de ansiedade e de depressão a muitas pessoas, inclusive a crianças e adolescentes.

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"A nova conjuntura social deflagra medo, o que pode desencadear ansiedade coletiva. É um grande pedido de socorro. Os jovens têm medo de se expor, de errar, de não cumprir prazos. Surgem sintomas como suor frio, taquicardia e mal-estar. O corpo começa a falar", diz o neuropsicólogo Hugo Monteiro Ferreira - DIVULGAÇÃO

Na última quinta-feira (19), mais uma vez, a vida real traz à tona o que está em pesquisas científicas como a que foi realizada pela USP. No Recife, um novo caso de ansiedade coletiva ocorreu entre alunos de uma escola pública estadual.

A ocorrência vem à tona um mês após adolescentes de outra escola passarem mal e precisaram de atendimento médico. Eles estavam nervosos com a aplicação de provas. A situação da última semana ocorreu na Escola de Referência em Ensino Médio Professor Mardônio de Andrade Lima Coelho, na Bomba do Hemetério, Zona Norte da cidade, onde 20 estudantes apresentaram crises de choro durante as aulas.

Não havia, naquela ocasião, algo pontual (como realização de provas nem outra atividade) que aparentemente pudesse deixar os alunos nervosos.

Segundo a Secretaria de Educação de Pernambuco, um aluno sentiu dores no peito logo após o almoço. Com autorização dos pais dele, a direção da escola o levou para atendimento médico numa Unidade de pronto atendimento (UPA). A secretaria ainda acrescenta que a irmã do adolescente, ao saber que o irmão havia ido à unidade de saúde, teve uma crise de choro. Isso teria desencadeado nervosismo em outros alunos, segundo a pasta.

“Teve estudante com convulsão. Aconteceu por volta das 15h30. A gente teria aula até 17h30, mas fomos liberados umas 15h30. Vi quatro ambulâncias na escola”, relatou, sem se identificar, uma aluna.

Para controlar a situação e dar assistência aos jovens, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foi acionado. Ninguém precisou ser levado a hospital, e os alunos que apresentaram ansiedade foram liberados com a chegada dos responsáveis. 

Há relatos semelhantes, em outras localidades brasileiras, como no interior de São Paulo. Toda essa circunstância só faz acender alertas para os cuidados com a saúde mental das crianças e dos adolescentes, principalmente após a volta às aulas presenciais num momento em que ainda alimentamos as incertezas e os desgastes provocados pela pandemia.

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Clima de volta às aulas presenciais associado às lacunas pedagógicas gerada pela pandemia tem causado comportamentos ansiosos nesta geração, diz psiquiatra - FREEPIK/BANCO DE IMAGENS

“Vivemos numa sociedade que não cuidou das emoções. Os sentimentos sempre foram deixados de lado.
Agora, percebemos que muitos jovens vêm desenvolvendo estresse pós-traumático, em meio a uma condição de vulnerabilidade socioemocional que já viviam antes da covid-19”, diz o neuropsicólogo Hugo Monteiro Ferreira, professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), onde coordena o Núcleo do Cuidado Humano e o Grupo de Estudos de Transdisciplinaridade da Infância e da Juventude.

Ele lançou recentemente o livro A geração do quarto (Editora Record), que aborda questões emocionais e
dificuldades enfrentadas por crianças e adolescentes, como comportamentos autodestrutivos, bullying, cyberbullying e psicopatologias.

Para Hugo, os vários momentos que vieram com a pandemia tornam o mundo cada vez mais incerto
e movediço, com medos acentuados, beirando ao pavor, especialmente em crianças e jovens que já viviam uma condição prévia de vulnerabilidade emocional.

Esse panorama fez crianças e adolescentes se deparam com situações que geram sofrimento. “Essa nova conjuntura social deflagra medo, o que pode desencadear uma crise de ansiedade coletiva, que é um grande pedido de socorro. Eles têm medo de se expor, de errar, de não cumprir prazos (das demandas escolares). Nesse contexto, surgem sintomas como suor frio, taquicardia e mal-estar. O corpo começa a falar”, explica Hugo.

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"Houve um aumento de 17% de crianças e adolescentes com ansiedade nesta pandemia", frisa a psiquiatra Rackel Eleutério - JEDSON NOBRE/ACERVO JC IMAGEM

Na visão da psiquiatra Rackel Eleutério, à frente do Departamento de Psiquiatra da Sociedade de Pediatria de Pernambuco (Sopepe), a crise sanitária atual despertou vários gatilhos emocionais que fizeram disparar a ansiedade na infância e na adolescência.

“Houve um aumento de 17% de crianças e adolescentes com ansiedade nesta pandemia. No consultório, percebo que o clima de volta às aulas presenciais associado às lacunas pedagógicas gerada pela pandemia tem causado comportamentos ansiosos nesta geração”, frisa Rackel.

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"Precisamos cuidar das crianças e jovens o quanto antes. Afinal, os transtornos de ansiedade e de humor não são sanados de uma hora para outra", ressalta a presidente da Sociedade de Pediatria de Pernambuco, Alexsandra Costa - DIVULGAÇÃO

Além da ansiedade, irritabilidade, tristeza, insônia, agitação e desesperança também têm se manifestado com mais intensidade e frequência nessa faixa etária. “Isso é fruto do contexto da pandemia que exacerbou o sofrimento. As crianças que passaram dois anos isoladas tiveram menos estímulo ao
crescimento e, por outro lado, passaram a ter uma maior exposição a telas, que era algo combatido. Com essa rotina que muda, vêm as consequências para a saúde mental”, diz a presidente da Sopepe, a infectopediatra Alexsandra Costa.

Para ela, o momento atual é de cuidar das crianças e jovens o quanto antes. “Afinal, os transtornos de ansiedade e de humor não são sanados de uma hora para outra”, acrescenta.

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