Apenas quatro horas e meia para agir: o tempo define o futuro do paciente com AVC

Cada minuto perdido significava milhões de neurônios danificados. Hoje, especialistas reforçam: 4h30 é o limite de ouro para salvar vidas,

Publicado em 28/12/2024 às 18:27 | Atualizado em 28/12/2024 às 19:21
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Durou menos de 60 minutos até chegar ao hospital, mas para a dona de casa Marta Maria Ferreira, 69 anos, pareceu uma eternidade. No dia 9 de junho deste ano, como de costume, acordou e foi preparar o café da manhã para ela e o esposo, o comerciante aposentado Lenaldo Pereira de Andrade, 78 anos.

Com tudo pronto, ela foi chamá-lo no quarto. Percebeu que estava estranho. Não conseguia se levantar da cama. "Eu disse logo que ele estava tendo um AVC (sigla para acidente vascular cerebral). Eram 6h15 no relógio. Chamei o vizinho para ajudar e, em menos de 10 minutos, a gente estava na UPA (Unidade de Pronto Atendimento)", recorda Marta.

Ela conta que "tudo ajudou naquele dia" para o rápido socorro. Eles moram perto de um serviço de saúde, a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Ibura, na Zona Sul do Recife. "Quando chegamos, a UPA estava vazia. Quando o médico viu meu esposo, logo disse que era um AVC. Tinha uma ambulância livre, que logo levou para o hospital."

Ele foi encaminhado para o Hospital Pelópidas Silveira (HPS), localizado no Curado, Zona Oeste do Recife. É a primeira unidade do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil com foco exclusivo em cardiologia, neurocirurgia e neurologia. Oferece cuidados especializados a pacientes com infarto, aneurismas e acidentes vasculares cerebrais (AVC), entre outras condições graves.

"Chegamos às 7h no Pelópidas, em menos de uma hora do primeiro sintoma que percebi no meu esposo. Fez logo uma tomografia e iniciou o tratamento. Essa rapidez toda foi importante demais, pois ele não ficou com sequelas graves. Tem apenas uns lapsos de memória. Hoje é acompanhado pelo Serviço de Atenção Domiciliar/SAD do hospital (leia sobre o SAD ao longo desta reportagem)", diz. 

THIAGO LUCAS/ DESIGN SJCC
RAIO-X DO AVC - THIAGO LUCAS/ DESIGN SJCC

Tempo não é apenas precioso; é decisivo

A velocidade relatada por Marta não tem exagero. É necessária demais quando se trata de AVC, atestam os médicos. Afinal, cada minuto perdido pode significar milhões de neurônios danificados.

"O atendimento precoce vai ter relação com a extensão do comprometimento que o paciente terá. Quanto mais precocemente a pessoa é levada para uma emergência, mais rápido será instituído o tratamento. Teoricamente, menor será a área (do cérebro) danificada. Por isso, falamos da importância da assistência em até 4 horas e meia, a contar do aparecimento dos primeiros sintomas, para que se possa levar o paciente imediatamente a um serviço de referência", diz o neurocirurgião Igor Faquini, coordenador da especialidade no HPS.  

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Para especialistas, cada minuto ganho no atendimento é uma vitória para o paciente e para a qualidade de vida - FREEPIK/BANCO DE IMAGENS

A busca por atendimento rápido, numa corrida contra o relógio, pode fazer a diferença entre a vida e a morte, a qualidade de vida ou a convivência com sequelas. Nesse sentido, a janela de tempo para minimizar sequelas de AVC é de apenas 4 horas e meia.

A trombólise e a corrida contra o relógio

"Tempo é cérebro, e a gente tem um tempo decisivo para o tratamento. Há uma medicação que, de forma mais leiga falando, afina o sangue, muito. Chamamos de trombolítico, que consegue fazer com que o sangue flua, a parte do cérebro acometido a volte a ter sangue e reduza o déficit do paciente. Mas esse tempo (para usar a medicação) é de até 4 horas e meia após os primeiros sintomas", explica o neurologista Fernando Travassos, coordenador da Neurologia do HPS. 

Ou seja, nem todo o paciente com AVC é candidato a usar o trombolítico. "No paciente com AVC hemorrágico, por exemplo, nunca utilizamos. Há casos de AVC isquêmico em que também não fazemos essa medicação: quando o déficit é muito pequeno ou quando há pontos que atrapalham, como fato de o paciente usar um anticoagulante", acrescenta Fernando. 

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"Tempo é cérebro, e a gente tem um tempo decisivo para o tratamento", alerta o neurologista Fernando Travassos - RENATO RAMOS/JC IMAGEM

A trombólise é um procedimento que utiliza um medicamento (trombolítico) para dissolver o coágulo e que faz parte do protocolo padrão para os casos de AVC agudo.

Onde o tempo salva vidas: o papel do HR

Maior emergência pública do Norte e Nordeste do Brasil, o Hospital da Restauração (HR), no Derby, área central do Recife, é uma das unidades de referência no Estado para o tratamento do AVC isquêmico. Na instituição, dentro da emergência clínica, funciona a Unidade de Acidente Vascular Cerebral, cujo principal tratamento feito é a trombólise. A equipe é formada por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e psicólogos.

Coordenadora da Unidade de AVC do HR, a neurologista Ana Dolores Nascimento informa que o hospital é um dos que mais internam pacientes por AVC no Brasil. "Em todo o Estado de Pernambuco, ocorrem cerca de 14 mil casos, entre isquêmicos e hemorrágicos, por ano. Só no HR, são internados de 4.000 a 4.500 pacientes por AVC a cada ano." 

A neurologista explica que, como no AVC isquêmico ocorre obstrução de um vaso arterial cerebral, a trombólise tem o papel de desobstruir a artéria antes que haja lesão irreversível. "Por isso, é tão importante passar por assistência nas primeiras 4 horas e meia após o início dos sintomas. A trombólise é, dessa maneira, capaz de salvar mais áreas porque permite restaurar o fluxo sanguíneo cerebral na região de penumbra isquêmica."

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"Os três principais sinais de alerta de AVC são boca torta, fala embolada e fraqueza no braço ou perna, qualquer um desses iniciando de forma súbita", informa a neurologista Ana Dolores - DIVULGAÇÃO

De acordo com Ana Dolores, 30% dos pacientes que conseguem chegar a tempo no hospital e passam pela trombólise terão uma vida sem sequelas ou com comprometimentos mínimos, em até 90 dias, com acompanhamento da equipe de fisioterapia. "Em 2023, o HR realizou 258 trombólises. Até o dia 26 de dezembro, já foram feitas 315. Esse aumento se deve principalmente ao fato de termos treinado as equipes das UPAs do Estado para encaminharem de forma imediata as pessoas com sintomas de AVC. Dessa forma, mais pacientes conseguirem chegar dentro da janela de 4 horas e meia para fazer a trombólise."

Em Pernambuco, trabalhadores da saúde das UPAs receberam, neste ano, o treinamento Código AVC - capacitação que aconteceu no HR e chamou a atenção para a urgência que os casos da doença exigem. "É preciso saber como atender o paciente rápido e os cuidados que devem ser dados no atendimento pré-hospitalar fixo, como uma UPA, porque é para onde os pacientes vão primeiro. Além disso, precisamos que esses pacientes cheguem rápido ao hospital", diz Ana Dolores. 

O trabalho do HR diante do atendimento precoce do AVC tem sido reconhecido mundialmente. A Unidade de AVC do hospital já foi premiada internacionalmente, com status gold, pelos bons resultados apresentados no último trimestre de 2023. A premiação foi concedida pela Iniciativa Angels, que ajuda hospitais do mundo todo a se tornarem preparados para os atendimentos do AVC agudo. O HR foi um dos 25 hospitais premiados do Brasil – e um dos três públicos com administração do Estado de Pernambuco.

LEIA TAMBÉM: Protocolo Samu aprimora detecção precoce do AVC, diz diretor-médico do serviço no Recife

E quando é preciso operar? 

Emergência médica que requer intervenção imediata, o AVC exige, em alguns casos, tratamento cirúrgico para salvar vidas e minimizar sequelas. Não é apenas o hemorrágico que pode precisar de cirurgia. No isquêmico, procedimentos como a trombectomia mecânica podem ser indicadas para remover coágulos que bloqueiam o fluxo sanguíneo no cérebro.

Já no AVC hemorrágico, intervenções cirúrgicas podem ser necessárias para drenar hematomas ou reparar vasos rompidos, a fim de aliviar a pressão intracraniana e prevenir danos adicionais.

"Nem todo AVC hemorrágico é cirúrgico, e existem também isquêmicos que podem necessitar de intervenção neurocirúrgica. Isso vai depender de uma série de características: do local onde aconteceu o AVC, da condição clínica do paciente e das suas comorbidades. São levados em consideração vários fatores antes de indicar o tratamento cirúrgico", explica o neurocirurgião Igor Faquini. 

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"Nem todo AVC hemorrágico é cirúrgico, e existem também isquêmicos que podem necessitar de intervenção neurocirúrgica", explica o neurocirurgião Igor Faquini - RENATO RAMOS/JC IMAGEM

O neurocirurgião reforça que os pacientes com indicação de tratamento neurocirúrgico, via de regra, geralmente necessitam da intervenção de uma maneira precoce. "Eles, então, precisam muitas vezes de um suporte pós-operatório bem estabelecido, com suporte de terapia intensiva (UTI). Então, os pacientes que vão para a cirurgia tendem a apresentar um estado mais delicado."

Ele frisa que, nos casos de AVC isquêmico extenso (aquele que atinge uma boa parte do hemisfério cerebral), há desenvolvimento de um edema, o que leva a uma cirurgia chamada craniectomia descompressiva. "O intuito é gerar espaço para esse cérebro 'inchado' se acomode e, depois de um tempo, reposiciona-se o osso que foi retirado ou se faz uma prótese reconstrutiva", diz Igor.

Já nos AVCs hemorrágicos, o procedimento vai depender da causa. "Se for aneurismática, é preciso tratar o aneurisma, com um procedimento de clipagem, para excluir o aneurisma da circulação. Hoje em dia, também há a técnica de embolização endovascular (utiliza dispositivos para bloquear o fluxo sanguíneo)." 

Ainda há o AVC hemorrágico parenquimatoso (ocorre quando há rompimento de um vaso sanguíneo no cérebro e leva a sangramento). "Para esses casos, tem que fazer a drenagem do hematoma. Então, é feita uma cirurgia para drenar essa coleção de sangue que se forma", completa Igor. 

Tempo também é ouro na reabilitação pós-AVC

Perder a capacidade de andar ou o equilíbrio não é só o que pode acontecer com uma pessoa que tem um AVC. As sequelas (ou consequências) incluem não só perda ou prejuízo das capacidades motoras, mas também de linguagem, cognição e perceptivas. Também pode vir algum distúrbio emocional. É por isso que o processo de reabilitação precisa ser iniciado de forma precoce. 

A atenção na recuperação de funcionalidades, independência e qualidade de vida do paciente precisa ser considerada por uma equipe multidisciplinar. 

Uma pessoa acometida por AVC passa uma mudança drástica. Antes do episódio, muitas tinham vida produtiva, trabalhavam. A depender da gravidade da doença, o paciente pode se ver restrito ao leito, com grande incapacidade funcional, restrições cognitivas, dificuldades de linguagem, de comunicação e até de alimentação. 

"Cerca de 70% das pessoas que sofrem um AVC não voltam ao mercado de trabalho. E a gente vê, cada vez mais, uma população jovem acometida. Isso muito vem dos fatores de riscos estarem se apresentando em pessoas cada vez mais jovens. Então, AVC atualmente não é uma doença de uma pessoa de mais idade, necessariamente. Imagine uma pessoa de 30, 40 anos passando por um episódio desses...", comenta a médica fisiatra Letícia Gomes de Barros, da Clínica Florence (unidade Recife), primeiro hospital de transição de cuidados do Norte/Nordeste.  

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"Cerca de 70% das pessoas que sofrem um AVC não voltam ao mercado de trabalho. E a gente vê, cada vez mais, uma população jovem acometida", diz a médica fisiatra Letícia Gomes de Barros - RENATO RAMOS/JC IMAGEM

"Tudo tem que ser urgente no AVC. O paciente precisa receber os primeiros cuidados de reabilitação a partir daquele momento que se encontra estável. Se estiver em UTI e bem controlado, a reabilitação já pode ser iniciada, com o protocolo de mobilização precoce. Sabemos que o movimento é remédio. E a mobilização do paciente já pode ocorrer num período de, pelo menos, 24 horas a 48 horas após o AVC", salienta Letícia. 

A fisiatra acrescenta que mobilizar muito precocemente, nas primeiras 24 horas depois do AVC, não é favorável. "Ainda nesse começo, o cérebro passa por uma etapa que se chama neurorrestauração. Mas passadas as primeiras 24 horas, é importante avaliar se é possível iniciar o acompanhamento com a equipe de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, mesmo ainda na UTI."

Após a alta hospitalar, mesmo para pacientes que só passaram por leitos de enfermaria, sem necessidades de terapia intensiva, os cuidados devem continuados em casa, em clínicas especializadas ou num hospital de transição. 

Em Pernambuco, esse cuidado após a alta hospitalar é uma realidade também no SUS. A assistência ao paciente pós-AVC, no Hospital Pelópidas Silveira (HPS), inclui o Serviço de Atenção Domiciliar (SAD), que, por meio de uma equipe interdisciplinar, dá continuidade ao atendimento na residência e em áreas públicas. O objetivo é cuidar das sequelas provocadas pelo AVC e proporcionar atividades sociais para ajudar na qualidade de vida e principalmente no processo de recuperação do paciente. 

No SAD, os pacientes recebem a assistência de uma equipe interdisciplinar formada por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, fisioterapeuta, assistente social, fonoaudióloga e nutricionista. "O processo de recuperação exige dedicação e adesão do paciente ao tratamento. O SAD, de forma interdisciplinar, cria plano terapêutico para cada um e sempre está atento para atender demandas que ajudem nesse processo", diz a enfermeira Andressa Marcante. 

"Para alguns, poder sair da cama e fazer uma refeição diferente à mesa já é motivo de alegria. Nossa equipe está atenta para promover esses momentos de humanização da assistência, planejando tudo com a segurança que o quadro de saúde do paciente exige."

Em novembro deste ano, a equipe do SAD levou dois pacientes à Praia de Boa Viagem, na Zona sul do Recife. Participaram do passeio terapêutico José Amaro da Costa, 58 anos, e Josinaldo Constantino, 63 anos. A atividade incluiu translado dos pacientes com acompanhantes, café da manhã com direito a caldinho e frutas, banho de mar, banho de sol e socialização. Tudo foi supervisionado pelo olhar dos profissionais do SAD. 

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Em novembro deste ano, a equipe de Atenção Domiciliar do Pelópidas Silveira levou pacientes (como Josinaldo Constantino, na foto) à Praia de Boa Viagem, na Zona sul do Recife, como parte do processo de reabilitação pós-AVC - ASCOM HPS/DIVULGAÇÃO

Ambos os pacientes foram atendidos no Pelópidas Silveira, entre dezembro de 2023 e janeiro deste ano, devido a quadros de AVC. Durante o passeio terapêutico na praia, José Amaro foi o que quis passar mais tempo à beira do mar, acomodado em uma cadeira de rodas que não afunda e é resistente à água salgada.

O passeio terapêutico é uma alternativa para tirar o paciente da rotina, proporcionar qualidade de vida e impactar positivamente na saúde física e emocional, com redução do estresse, da ansiedade e melhora do bem-estar geral. 

THIAGO LUCAS/ DESIGN SJCC
RAIO-X DO AVC - THIAGO LUCAS/ DESIGN SJCC

 

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