O comércio, a imprensa e um problema da proposta de valor
Negócios tradicionais que acreditam estar imunes ao digital correm risco crescente de desaparecer. Saiba o que eles podem aprender com o declínio do impresso e digitalização do jornalismo
As milhares de lojas físicas e o jornalismo parecem coisas distantes. Mas há um ponto em comum entre eles, a crescente ameaça que o mundo digital se tornou para sua existência. E o que parece ser um problema com o digital, na verdade se trata de uma questão de proposta de valor (ou da falta dela no comércio e na imprensa).
Por que as pessoas deveriam se importar com o que você produz, publica, vende ou oferece? Essa é uma pergunta que todo empreendedor deveria se fazer. Mas existe na imprensa e no comércio físico um sentimento de self-entitlement, a crença de que alguns merecem mais que outros. E isso faz com que ambos ignorem a pergunta acima e sigam sendo “engolidos” pelo digital.
A imprensa, por exemplo, acredita que por ser fundamental para a democracia, deveria ter benefícios que outros setores não têm. Por outro lado, o comércio físico de serviços, acredita merecer benefícios porque gera muitos empregos ou pelo fato de estar protegido por sua geografia, à medida que resolve a necessidade do consumidor comprar algo e receber o produto no mesmo momento.
E de modo algum questiono a necessidade da imprensa para a democracia ou do comércio físico para a geração de empregos ou entrega de produtos instantaneamente, principalmente em regiões de difícil acesso logístico. Meu ponto é que o self-entitlement faz com que as organizações deixem de olhar seus produtos e ofereçam uma experiência inferior ao online. Diversas empresas, por terem sido necessárias por muito tempo, se julgam insubstituíveis. E isso faz com que percam mercado e se tornem cada vez menos competitivas.
Corrida para o fundo do poço
A queda do modelo de negócio do jornalismo e do comércio físico estão diretamente associados ao crescimento da internet. O primeiro, do jornalismo, começou antes. Os jornais perderam o rumo à medida que os classificados e a publicidade em geral migraram das páginas impressas para a internet, reduzindo a maior fonte de receita. Posteriormente, com o surgimento do Facebook, Twitter e demais redes sociais e apps para compartilhar informação, a atenção dos usuários também migrou para o online. O resultado, todos conhecem: redações cada vez menores e jornais e revistas fechando. Por outro lado, as pessoas seguem se informando das mais variadas maneiras.
E algo semelhante irá acontecer com o comércio físico. Ele sofrerá cada vez mais à medida que as compras, antes físicas, cada vez mais se tornam online. E a pandemia acelerou esta tendência.
“Ah, mas isso ainda vai levar décadas para acontecer, meu cliente quer receber o produto na hora”, podem imaginar os defensores do comércio físico. Bom, esse era o discurso do impresso e de muitos jornalistas não faz muitos anos. Mas a verdade é que as forças que nos empurram para o digital são enormes. Preços cada vez mais baixos e variedade cada vez maiores, aliados a uma experiência digital cada vez melhor são fatores poderosos e difíceis de concorrer.
Acreditar que a simples conveniência de estar próximo criará uma proposta de valor para o seu produto é uma ilusão. À medida que drones se popularizam e entregas começam a acontecer cada vez mais rapidamente, o comércio físico passará por uma grande turbulência, a exemplo da mídia tradicional.
Mas no online a concorrência parece ser desigual. Como um comércio local competirá com os gigantes digitais? A verdade é que a maior parte do comércio local não conseguirá competir e vai fechar suas portas. Muitos talvez imaginem que esse é um efeito temporário da pandemia, como muitos imaginaram que a crise global de 2008/09 levou ao fechamento de muitos grupos de mídia temporariamente. Não, esse não é um movimento temporário. É o futuro.
A boa notícia é que milhares de novos negócios digitais vão surgir. Pessoas que no passado não podiam empreender pela falta de capital, agora têm a vantagem do digital reduzir o custo de acesso. O sucesso no digital passa muito mais por conhecimento do meio eletrônico e a capacidade de ter uma ideia do que meramente pela capacidade de abrir um CNPJ, alugar um espaço, contratar funcionários e comprar mercadorias.
Plataformas como o Shopify já permitem a pequenos empreendedores montar suas próprias lojas virtuais a um custo baixíssimo em comparação às lojas físicas. Muitos pequenos empreendedores também podem usar os marketplaces da Amazon, Mercado Livre e Magazine Luiza, onde vendem dentro dos sites desses gigantes de e-commerce e tantos outros. O preço é um fator decisivo, mas o diferencial de quem vende online está na capacidade de criar uma boa experiência e gerar marketing a baixo custo.
É importante notar que a digitalização da imprensa não a levou à extinção. Na realidade, nunca se produziu tanto conteúdo jornalístico. Mas a maneira de fazer jornalismo mudou. Diversos jornalistas deixaram redações tradicionais e criaram suas próprias publicações, especialistas compartilham suas opiniões em redes sociais, há um crescente número de podcasts e canais de YouTube e assim por diante.
Mesmo entre veículos de mídia tradicional, muitos sumiram. Mas aqueles que conseguiram se adaptar e criar uma proposta de valor para seus usuários voltaram a crescer. O Washington Post, nos Estados Unidos, por exemplo, alcançou seu recorde de jornalistas na redação este ano e vive o melhor momento em sua história. Vale lembrar que o jornal rumava à decadência antes de ser comprado por Jeff Bezos. Bezos, que também é CEO da Amazon, é um dos maiores criadores de proposta de valor do mundo. A Amazon é a prova.
E como será a migração do comércio físico para o digital? Essa é a resposta de 1 trilhão de dólares, literalmente. A Amazon já vale mais de 1 trilhão de dólares. Mas o histórico do impresso, mais fácil de digitalizar que o comércio físico, nos dá algumas pistas.
Primeiramente, o e-commerce tem duas pontas, que vão da logística à experiência. “Na ponta da logística, você sabe exatamente o que deseja e o trabalho do varejo é fornecer a maneira mais eficiente de obtê-lo. Na ponta da experiência, você não sabe, e o trabalho do varejo é ajudá-lo - com ideias, sugestões, curadoria e serviço”, diz Benedict Evans.
“Quanto mais uma categoria de varejo se afasta dessas questões de logística, pior a chance da internet funcionar. É muito mais fácil conectar um banco de dados a uma página da web do que colocar a experiência humana em uma página da web. A Internet permite que você more em Wisconsin e compre qualquer coisa que possa comprar em Nova York, mas não permite que você faça compras da maneira como faria em Nova York. E assim, grande parte da história do comércio eletrônico nos últimos 25 anos foi, por um lado, converter coisas que pareciam precisar de experiência em logística, mas, por outro lado, tentar descobrir como construir experiência online”, diz Evans.
Mas com o surgimento de plataformas como o Instagram e os influenciadores digitais, agora as pessoas podem “se sentir” comprando nos grandes centros ou tendo acesso ao que antes era limitado a pequenos grupos. A questão da experiência foi aprimorada. Por essa razão o e-commerce cresce tanto no Instagram e em plataformas onde há influenciadores.
Comércio é logística e experiência. Mas também é cultura. O que acontecerá quando essa geração que cresceu comprando até comida por apps for predominante? Provavelmente, algo semelhante ao jornalismo que viu a derrocada do impresso, sua maior fonte de receita.
Independentemente do seu ramo de negócio, é fundamental superar o self-entitlement. O fato do seu negócio ser relevante hoje, não necessariamente o tornará relevante amanhã. Responda à pergunta: por que as pessoas deveriam se importar com o que você produz, publica, vende ou oferece? Se você tiver uma proposta clara, com uma boa proposta de valor para seu consumidor, seu produto vai sobreviver, seja no mundo físico ou online.