Há instrumentos que a simples visualização mental deles vem atrelada a uma persona. Por aqui, as percussões de raízes africanas talvez venham acompanhadas da imagem de Naná Vasconcelos, ou a guitarra Gibson ES-335 vermelha logo evoca Chucky Berry. É dessa forma que fica impossível tentar visualizar um trompete sem que ele esteja ligado ao lendário Miles Davis, um dos maiores músicos do século XX. A mãe queria que ele empunhasse um violino, o pai bateu o pé pelo instrumento de sopro, consolidando o ponto de partida para alguém que inspirava/exalava música e se tornaria um maestro sempre à vanguarda.
E o resto é história, contada neste Miles Davis: Birth of the Cool, disponível na Netflix. Com direção de Stanley Nelson (do excelente Os Panteras Negras: Vanguarda da Revolução) , o documentário tenta lidar com a vida e a arte do célebre músico, passando pelas dificuldades que obras desse tipo precisam superar para conciliar essas duas instâncias. Ainda assim, o projeto dá conta em pincelar um retrato que deixa claro como seu protagonista é complexo. E, se no campo pessoal e das dinâmicas sociais falta um pouco mais dedicação, a investigação estética dos impulsos artísticos de Davis é, além de bem estruturada, cativante em ilustrar seu modo único de fazer música.
Em suas quase duas horas, o documentário perpassa a vida do músico desde sua infância, nos anos 1920, até sua morte, em 1991. Para dar conta desse período, a produção se estrutura entre entrevistas com familiares, amigos e especialistas, além das palavras do próprio Miles, interpretadas pela voz de Carl Lumbly, emulando sua voz rouca. Um fascinante material de imagens de arquivo das diversas fases da sua vida, que além do potente caráter imersivo, não deixa o filme passar da conta nas cabeças falantes que dão seus depoimentos. Tudo embalado pelas músicas que fizeram Miles ser quem é, dando uma força diferenciada para várias passagens.
O desafio desse tipo de documentário, principalmente quando ficam claras suas intenções, é saber deixar claro as relações mutualistas entre arte e vida privada, estética e intimidade, sem deixá-los soar como blocos separados. Aqui, a direção de Nelson parece ciente disso, mas a execução não é das melhores. O entusiasmo pelos processos criativos é o que parece mais apetecer os desejos da narrativa. Não que as reviravoltas, amores, vícios e conflitos da vida de Davis não estejam lá. Estão e ainda impulsionadas pelas palavras de pessoas que viveram esses momentos relatados. Mas muitas vezes soam apressados, não concretizam a profundidade inerente a algumas essas passagens, desperdiçando a chance de criar um retrato mais complexo em seu aspecto psicológico e social.
Contudo, o mergulho em sua obra ganha um tratamento notável. Expõe logo a diretriz de que Miles dominava o clássico, mas era movido pelo estar sempre em um novo lugar na arte. É um argumento que fica fácil de defender quando se tem, além das conversas com seus colaboradores frequentes e suas próprias palavras, a música. Está lá seu passeio pelo bebop, o modal, fusion, em seus flertes com rock, funk, música indiana, além de parcerias com nomes que vão de John Coltrane a Prince. O nascimento de clássicos como Kind of Blue e Bitches Brew, assim como seu método de criação improvisado e poderoso também deixam sua marca.
E, dentro de um olhar mais psicológico, são palpáveis as pinceladas que são dadas sobre essa posição que Miles ocupava enquanto um negro rico e bem sucedido dentro de uma sociedade segregadora. As tensões raciais pelas quais precisou passar e a forma como ele se apropria disso, criando uma persona de um bon vivant ostentador que o rap tomaria para si anos mais tarde. Apesar de, mais uma vez, ter esses momentos tratados com um teor mais episódico, do tipo "olha aconteceu isso, mas vamos para a próxima página", Nelson não deixa de dar a dimensão do significado deles na vida de Davis. Não aprofunda, mas também não apaga. O mesmo com momentos de violência doméstica e problemas com drogas.
Ainda assim, Miles Davis: Birth of the Cool não é um trabalho que possa ser considerado indigno da trajetória de seu personagem principal. É um material que pode fascinar tanto pelo apresentação que pode fazer do trabalho de Davis para quem não é familiarizado, assim como também deve agradar os fãs mais entusiastas, com as histórias que carrega. Caso não funcionasse em nenhum desses aspectos, a música que o permeia já satisfaria de alguma forma seu espectador.
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