ENTREVISTA

'Nós, privilegiados, estamos mais em 'prisão domiciliar' do que em isolamento social', reflete o escritor Marcelino Freire

O premiado escritor pernambucano Marcelino Freire mora em São Paulo há quase 30 anos e, em 2020, celebra as importantes efemérides de dois de seus livros e, em entrevista ao Jornal do Commercio, reflete sobre a pandemia que nos assola e o que significa isolamento social

Valentine Herold
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Valentine Herold
Publicado em 06/04/2020 às 10:59 | Atualizado em 03/06/2020 às 20:08
JORGE FILHOLINI/DIVULGAÇÃO
Marcelino Freire é autor dos livros Angu de Sangue, Nossos Ossos e Contos Negreiros, entre outros - FOTO: JORGE FILHOLINI/DIVULGAÇÃO

"Leve uma ilha para um livro deserto", escreveu Marcelino Freire dentre tantas outras frases-pensamentos durante esses dias de quarentena. Pernambucano de Sertânia e radicado há quase 30 anos em São Paulo, é um dos grandes nomes da literatura contemporânea brasileira e celebra este ano as importantes efemérides de dois de seus livros.

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Lançado em 2000, Angu de Sangue é um livro de contos cujo sucesso não se limitou à literatura e rodou os palcos de teatro do Brasil com adaptação do Coletivo Angu de Teatro. Já Contos Negreiros, obra pela qual Marcelino venceu o Prêmio Jabuti em 2006, completa 15 anos e também foi levado para as artes cênicas, além de ter resultado na participação do escritor em um disco de Emicida, narrando um dos contos.

 

Entre colagens, leituras e escritos, ele conversou com a repórter Valentine Herold sobre este momento de pandemia e a atualidade de seus livros.

JORNAL DO COMMERCIO - Esse ano de 2020 marca duas datas importantes na sua carreira: os 20 anos do lançamento do livro Angu de Sangue e os 15 anos de Contos Negreiros. Está planejando alguma celebração ou reedições?

MARCELINO FREIRE - Estávamos em conversa, eu e a editora José Olympio, para fazer uma coletânea reunindo 20 contos meus. Algo como os 20 Melhores. Eu fico meio constrangido com essas coisas de "melhores", entçao sugeri o seguinte título: Por Pior Que Pareça. Aí fico mais tranquilo. Paramos a conversa nesse ponto, como tudo parou no mundo, não é? Até o final do ano lanço um livrinho chamado Escrever é Osso, com frases bem curtas. São dicas de escrita e este livrinho vai sair por um novo selo que criei, o Ciclovia. Convidei dois poetas para participar do "microcatálogo" da Ciclovia, Luz Ribeiro e Victor Rodrigues. Também gravei o audiolivro Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire. Este já está no ar. Estava terminando de gravar o Pedagogia do Oprimido, mas aí veio a quarentena...

JC - As temáticas desses dois livros, Angu de Sangue e Contos Negreiros, continuam extremamente atuais. Racismo, violência urbana, desigualdade social são algumas constantes no Brasil. Sua percepção sobre esses assuntos mudou desde então?

Marcelino Freire - Esses assuntos são antigos e continuarão existindo. A não ser que a pandemia mate toda a humanidade. Viu como, nessa quarentena, os rios e os peixes voltaram a respirar? O homem é o verdadeiro vírus. Agora, veja bem, sobre os meus livros, eu não lançaria o livro Contos Negreiros nos dias de hoje. Não que ele esteja datado ou ultrapassado. Sei da atualidade, sim, dos temas, que até hoje percorrem o Brasil com peças de teatro que adaptaram deste meu livro. Mas muita gente atualmente está escrevendo sobre racismo e, com certeza, com muito mais visão e força do que aquilo que eu fiz. O racismo, sim, é um problema de todos e todas,15 anos atrás dei a minha contribuição. Minha maior contribuição agora, no entanto, é abrir a escuta ainda mais. Revejo Angu de Sangue à luz das discussões atuais e fico ali, procurando em que ponto-parágrafo fui machista, por exemplo. É um exercício bom de se fazer.

JC - Estamos vivendo um momento difícil em que a maior orientação é que a população fique em casa para conter o avanço do coronavírus. Você trata um pouco desse tema da alteridade no texto Isolamento Social, que publicou no Facebook. Como analisa esse momento de pandemia para as diferentes classes sociais?

Marcelino Freire - Eu fiquei olhando para essa expressão "isolamento social". Olhei para mim, em casa, rodeado de livros, no bairro da Vila Madalena. Aí me vieram ao juízo aqueles que não têm casa, aqueles que moram com mais dez pessoas em um mesmo barraco. Pensei naquele que sai de casa todo dia exatamente para não ficar em casa. Pensei em um irmão meu, mais velho e já falecido, que batia perna o dia inteiro atrás de emprego, porque se sentia humilhado se ficasse parado. Pensei no velho que saía à praça para ficar lá, isolado no tempo, porque em casa ele se sente um peso morto. Pensei naqueles que moram em buracos de pensão. Esses são os verdadeiros "isolamentos sociais". Nós, privilegiados, estamos mais em "prisão domiciliar" do que em "isolamento social".

J.C - Como você vem lidando com o isolamento desta quarentena? Tem conseguido produzir artisticamente?

Marcelino Freire - Eu tenho muitos caderninhos. É ali onde faço anotações sobre literatura. Também adoro, faz tempo, fazer colagens, que eu chamo de "descolagens". Também aproveitei para arrumar livros, papéis. E quantos tesouros encontrei. Ou seja, viajo tanto que não noto o que há embaixo do meu colchão. Na verdade, a gente viaja muito para fugir de casa. A quarentena me fez ficar comigo. Eu ao lado de um original de um livro de João Gilberto Noll, que eu nem lembrava que tinha. Reencontrei outras tantas dedicatórias de Manoel de Barros, Millôr Fernandes. Um bilhete de Lygia Fagundes Telles. Muitas fotos e até revistas pornôs. Não sei o que estava fazendo, tão embrulhada, a G Magazine com o jogador Vampeta, por exemplo.

JC - Em 2015 você participou do álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa..., de Emicida. Agora, neste mês de março, o pernambucano Alexandre Revoredo lançou um disco em que musicou poemas seus. Esse diálogo entre literatura e música é importante para você?

Marcelino Freire - Eu tenho o maior orgulho de participar desse disco de Emicida. Conheço-o desde quando ele vendia EPs por 2 reais. Aliás, nesse disco eu gravei o Trabalhadores do Brasil, que abre o livro Contos Negreiros. Eis aí, mais uma vez, minha forma de dialogar e contribuir. Amo música. Tem um compositor de Serra Talhada chamado Caio Sotero que pôs música em um texto meu. E agora essa alegria, já antiga, de ter Alexandre Revoredo como meu parceiro. No disco dele, há duas músicas que ele fez a partir de poeminhas meus. E há outras parcerias nossas. Eu digo que ele é meu "alter-ego musical". Que orgulho eu tenho disso. O disco ficou bonito demais e Revoredo merece todo sucesso. É um guerreiro. Hora de prestigiar esse nosso artista de Garanhuns...

J.C - Quais os próximos projetos para 2020?

Marcelino Freire - Sobreviver.

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