Análise

Como 'Bionic', de Christina Aguilera, ressignificou a ideia de fracasso no pop

Lançado há dez anos, álbum foi um marco na carreira da cantora e marcou época

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 07/06/2020 às 6:00 | Atualizado em 08/06/2020 às 10:51
Alix Malka/Divulgação
Para Aguilera, disco foi incompreendido porque sonoridade e estética futurísticas estavam à frente do seu tempo - FOTO: Alix Malka/Divulgação

Bionic, de Christina Aguilera, é um dos álbuns mais emblemáticos do pop, ainda que não tenha causado impacto nas paradas de vendas de discos e singles. Na verdade, foi justamente por não atingir as expectativas comerciais, sob o escrutínio das redes sociais, que o trabalho se tornou um marco, redefinindo conceitos de sucesso e fracasso. Dez anos após seu lançamento, ele continua a pautar debates e passa por um processo de reavaliação crítica e afetiva.


A direção criativa tomada por Christina Aguilera no Bionic foi um rompimento radical com seu trabalho anterior, Back To Basics (2006), que reverenciava o passado, com inspiração em ícones da música dos anos anos 1920 aos anos 1960, tanto na sonoridade quanto na estética. O Bionic, por outro lado, era sua ode ao futuro, resultado do seu crescente interesse na música eletrônica, que já vinha sendo explorado desde a coletânea Keeps Gettin’ Better (2007), na qual chegou a repaginar alguns de seus clássicos, como Beautiful, a partir do electropop.


Para o projeto, ela escalou nomes fortes da música eletrônica, como Peaches, Le Tigre, M.I.A, Santigold, além de uma ainda alternativa Sia (hoje uma titã do pop) e Nicki Minaj, que estava em ascensão. A recepção do trabalho, porém, foi conturbada: Lady Gaga começava a explodir no cenário mundial e muitas comparações foram feitas entre o trabalho de ambas.

Praticamente todas as notícias que saíam sobre Christina eram negativas: o fim de seu casamento, acusações de plágio e de comportamentos erráticos da cantora. Era um momento em que o cenário alternativo e o mainstream, hoje mais fluídos, eram separados por barreiras rígidas. Christina, então, acabou não sendo abraçada nem pelo público indie, de onde estava tirando inspirações para a sua música, nem pelo circuito comercial no qual estava previamente estabelecida.


A estreia do disco em terceiro lugar na parada de álbuns dos EUA, com 110 mil cópias vendidas, o número mais baixo da carreira dela até então, foi vista como um fracasso de grandes proporções, especialmente se comparado ao disco anterior, que comercializou 346 mil unidades apenas na primeira semana.

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Os singles Not Myself Tonight e You Lost Me também não decolaram e, em poucos meses, a campanha de divulgação do disco foi abortada, inclusive com o cancelamento de uma turnê previamente anunciada. Questionada sobre a recepção do disco, Christina afirmou, alguns anos depois, que tinha orgulho do trabalho e que ele tinha sido incompreendido por estar à frente de seu tempo.

O álbum logo virou motivo piada, um sinônimo de “flop” (fracasso, em inglês), termo que foi abraçado pelos aficionados por música pop. Os fãs, porém, sempre defenderam a qualidade da obra e passaram a defender a hashtag #JusticeForBionic (Justiça Para o Bionic, em português).


Para Eduardo Rodrigues, cujo objeto de pesquisa no mestrado em Comunicação na UFPE é o fracasso na música pop, o fenômeno acontece de uma forma singular no gênero em relação aos outros estilos musicais, pois se trata de um processo muito midiatizado e que está intrinsecamente ligado à uma pauta capitalista.

Ao mesmo tempo, também articula construções através da sensibilidade e do afeto, o que torna sua análise complexa. Nesse sentido, ele percebe o Bionic como um ponto de virada no entendimento desse fenômeno na atualidade.


“Ele iniciou um processo que é muito contemporâneo, que é a busca por justiça e dialoga muito com a forma como percebemos o fracasso na música pop por causa das nossas afetividades. A gente não quer que o disco da nossa diva favorita fracasse, então a gente quer achar justificativas para isso”, explica. “Daí surgem muitas fabulações, desde histórias que a gravadora não divulgou direito, que houve boicote, que ela estava com problemas na vida pessoal. E essas fabulações que ganham corpo nas redes sociais, que são uma forma de corporificar e perceber o fracasso, através de hashtags, fanfics, de posicionamentos dos próprios artistas e de veículos de comunicação.”

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Como defende Jack Halberstam no ensaio A Arte Queer do Fracasso (Cepe Editora), não ser bem-sucedido pode significar, também, uma subversão. Citando Quentin Crisp e Andy Warhol, ele diz que o fracasso apresenta uma possibilidade “e não o fim da linha”. Eduardo Rodrigues tem um pensamento semelhante e vê caminhos interessantes a partir dessas rupturas.


“Ao observar fracassos de produtos massivos, a gente pode ver um caminho alternativo para perceber esses produtos culturais, que é através de uma ótica de desvio, o que pra mim é uma maneira muito inusitada de observar as engrenagens da cultura pop. A gente começa a ter outros tipos de percepção, que são as de falha”, pontua. “Com o fracasso, a gente também consegue perceber valores muito latentes da indústria pop, como descartabilidade e perversidade. Gosto de pensar o fracasso não como erro, mas como uma ruptura, como um caminho alternativo para a gente se relacionar com a música pop.”


Ele pontua ainda que o disco marcou uma transformação na biografia artística de Christina Aguilera. A partir de então, sua narrativa estaria intrinsecamente ligada às tentativas de superação e reinvenção, como nos álbuns Lotus (2012) e Liberation (2018), cujas narrativas giram em torno de ideias de renascimento e libertação.

LEGADO


Além de sua qualidade passar por um processo de revisão da crítica e do público, o Bionic também inspirou campanhas de apreciação de obras consideradas injustiçadas pelos fãs. A partir das campanhas online, inclusive com a volta desses trabalhos às paradas graças aos esforços dos fãs, artistas têm abraçado obras anteriormente renegadas, como foi o caso de Glitter (2001), de Mariah Carey, recentemente disponibilizado nos streamings.

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Britney Spears também ouviu o clamor dos fãs, após uma campanha virtual, e alterou, depois de anos de reclamações dos fãs, a capa do Glory (2016). Sua equipe também disponibilizou nos streamings a faixa Mood Ring, anteriormente presente só na versão japonesa do álbum. Nas plataformas, a canção aparece acompanhada da descrição “a pedidos”, enfatizando a força da mobilização dos fãs.


Em suas redes sociais, Christina Aguilera também aderiu ao movimento e anunciou através das que fará justiça para o Bionic. A cantora, que por muito tempo não falou do disco, pediu que os fãs enviassem perguntas a respeito do álbum através do Twitter e disse ainda que mais conteúdos relacionados ao álbum estariam a caminho.

Uma dessas surpresas para os fãs foi o compartilhamento da faixa Little Dreamer, muito querida pelos fãs, nas plataformas de streaming. A canção fazia parte da versão deluxe do Bionic comercializada pelo iTunes.

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