As transformações na dinâmica social provocadas pelo novo coronavírus têm atravessado a produção de artistas de todas as linguagens, com o surgimento de obras direta ou indiretamente influenciadas pela epidemia. Nas artes visuais, artistas têm refletido essas questões de forma individual e/ou coletiva, buscando entender, através de seus trabalhos, o estado do mundo e as repercussões desse momento histórico nos âmbitos coletivos e individuais.
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Com uma produção muito ligada à rua, Manoel Quitério conta que a eclosão da pandemia lhe provocou um choque e colocou em suspenso alguns projetos pensados para o espaço público. No isolamento social, o artista voltou a dar atenção a um lado de sua obra que estava em segundo plano diante da rotina frenética, como a pesquisa e a pintura a óleo.
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"Para mim, é um momento de recolhimento e reflexão. Tenho pesquisado muito e voltado a vários temas do início da minha carreira, como a fronteira entre realidade e fantasia, o mundo de dentro versos o mundo de fora", diz o artista. "Tenho pesquisado também muito os símbolos, as religiões brasileiras, cabala, tarô etc. Acho que é um momento de revisão de rituais - inclusive os cotidianos, como uma simples saída ao supermercado, por exemplo."
Em suas redes sociais, Manoel Quitério tem compartilhado alguns trabalhos, entre eles produções que abordam a dinâmica da vida durante a pandemia, com retratos do isolamento e sentimentos de saudade, esperança e de solidariedade. Ele conta também que tem voltado a prestar maior atenção aos seus sonhos e aos seus significados.
O processo de investigação do subconsciente também tem sido tema do artista Gabriel Furmiga na série Aprendendo a Ler Sonhos. Ele conta que passou a explorar a pintura com mais avidez desde o final do ano passado, já que, anteriormente, sua produção estava ligada ao desenho. Com a pandemia, estocou várias telas e, em um primeiro momento, produziu freneticamente.
"O processo foi começando a se moldar de forma diferente. Eu tenho o hábito de andar com um caderno na bolsa e sempre vou anotando, desenhando coisas enquanto estou no processo de pegar ônibus, trabalhar, ir para a faculdade. Era um processo de absorver essas inspirações que falavam da minha relação com o espaço e as pessoas - e agora tudo isso mudou, com um ambiente totalmente individual", reflete.
Furmiga observa seus trabalhos agora ligados a questões afloradas por esse cenário de isolamento. Ele percebe uma quebra na linha do tempo como costumava-se enxergar, entendendo que alguns hábitos ficaram no passado e entendendo o presente como um momento de incerteza. O futuro, enquanto incógnita, suscita também ideias e possibilidades de transformação.
Ele pontua ainda que a impossibilidade de realizar ações prosaicas, como ir a uma loja comprar tintas - e a partir desse ritual, também exercitar ideias para possíveis obras - alteram a forma de produção, também mediada pelas relações online.
CORES
A singularidade deste momento histórico e as diferentes formas como ele afeta cada indivíduo pode ser percebida nesta pluralidade de sensações evocadas. O pintor Antonio Mendes, por exemplo, tem percebido uma redução na paleta de cores em sua obra, o que, na sua opinião, não quer dizer que os temas ficaram necessariamente mais sombrios, mas que as temáticas receberam influências do momento difícil que o Brasil atravessa em relação à saúde e à política.
"São também reflexões existenciais e políticas que vêm a reboque em um momento (de crise) como esse. A gente está passando um período político extremamente difícil ao meu ver, com ideias bastante obscuras renascendo e ganhando força com uma parcela da população e isso preocupa", aponta. "Ao mesmo tempo, como tenho obsessão pela busca de luz - comecei pintando paisagens e até hoje me considero um paisagista - no sentido subjetivo, simbólico. Mesmo com a paleta mais fria, a luz se faz presente, como uma perspectiva que não me abandona."
Já a artista visual Ana Veloso, que habitualmente não trabalha com muitas cores, se viu reagindo às angústias da pandemia com a expansão da paleta. Trabalhando no interior durante a quarentena, ela tem produzido com intensidade, a exemplo de uma série em que trabalha com raízes como suportes que, ao seu olhar, se confundiam com neurônios.
"Creio que os meus estejam inquietos buscando resposta para o tempo que estamos passando. Para romper a angústia que estava em preto e branco, replicando as formas rasgadas das raízes, abri a paleta de cores e fiz a festa invertendo os sentimentos produzido pelos tempos em luz e alegria. Nesses 3 meses a produção de encontra com 23 mini quadros, seis médios, dois painéis e 12 objetos", conta.
FUTUROS
Para a educadora e curadora Ariana Nuala, o momento é de reflexão diante do cenário que se apresenta para as artes visuais, com os espaços culturais fechados e os editais (muitos deles adiados) precisando se adaptar aos novos modelos de produção e compartilhamento. Ela integra o coletivo Carne, que está presente na plataforma online Echo, criada para promover articulação a nível nacional durante a pandemia.
"Estamos tentando entender o que a gente vai fazer agora. Somos um coletivo muito marcado pela presença nas ações formativas e às vezes a relação do corpo é muito importante. A presença do corpo racializado negro, muitas vezes ausentes e apagados dos espaços, é muito importante, por exemplo", aponta.
Coordenadora do educativo do museu Murillo La Greca, ela enfatiza que os equipamentos culturais estão tentando entender como será o mundo pós-pandêmico, mas que o colapso da área não é uma novidade para quem já se atentava para os desmontes e as faltas de estrutura anteriores ao coronavírus.
"Também é preciso entender outras formas de agenciar a produção online. Não é só live ou vídeo. Precisamos ver o suporte que é a tecnologia da internet e perceber a rede como um espaço de autonomia", afirma Ariana.
Nesse sentido, os entrevistados enxergam as redes sociais como um mecanismo potente para articulação de redes de colaboração, assim como de exposição e divulgação dos trabalhos. Gabriel Furmiga diz sentir uma maior conscientização quanto à importância de apoiar os artistas locais, e de adquirir obras, em alguns casos até de forma antecipada, com a emissão de vouchers para serem trocados por trabalhos após a pandemia, e fomentar o mercado.
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