Nova roupagem

Terceira temporada de 'The Sinner' contrasta Nietzsche e o privilégio branco

Harry Ambrose se evolve em trama com inspirações filosóficas, que só expõe privilégios e contrastes entre as realidades dos personagens

João Rêgo
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João Rêgo
Publicado em 21/07/2020 às 15:14 | Atualizado em 21/07/2020 às 15:47
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Jamie Burns e Leela Burns formam um casal de contrastes implícitos na narrativa - FOTO: Reprodução

Surfando no catálogo de novidades da Netflix, você irá se deparar com a terceira temporada da sombria The Sinner. Com um grau de popularidade mediano (considerando outros sucessos da plataforma), há uma grande probabilidade de você também não ter assistido as duas temporadas anteriores.

Felizmente, nesta terceira parte da série isso não será um problema. A nova trama de mistérios pouco diz respeito as relações internas do detetive Harry Ambrose, protagonista interpretado por Bill Pullman. O foco aqui é redirecionado ao desenrolar dos acontecimentos centrais e como tudo estará girando em torno deles.

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Na nova temporada, Harry investiga um acidente de carro fatal em Dorchester, envolvendo dois homens de classes sociais relativamente abastadas, com apenas um sobrevivente. Para os que acompanham a produção o desenrolar é óbvio: o que pode parecer um fato usual, se torna uma obsessão para o detetive desvendar elementos ocultos.

Este é, inclusive, o funcionamento básico da série, onde acompanhamos tanto a rotina do investigador como as dos investigados. O que nos mantém presos é a busca de ambos por mistérios que motivaram os crimes em questão – desconhecidos pelo detetive, pelos autores e, consequentemente, por nós.

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Harry Ambrose, detetive vivido por Bill Pullman - Reprodução

Ou seja, toda trama parte de um proposito narrativo que antecipamos, mas não fazemos ideia de como será solucionado. A magia reside justamente nas reviravoltas zombando de nossas caras com um “você não estava esperando por isso”, ao mesmo tempo em que “não poderia ser algo diferente”.

Bill Pullman com um olhar sempre cansado é quem vai nos levar a essas conclusões inevitáveis. Ao menos nas duas últimas temporadas.

Para esta terceira, o desenrolar é outro. Lá pelo quarto episódio, já temos conhecimento dos vilões, impasses e possíveis conclusões da trama. O interesse é agora pela complexidade dos personagens, suas motivações e como elas vão impactando o detetive Harry Ambrose.

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A dica foi dada na temporada antecessora, focada principalmente nos choques entre o envolvimento de Harry com seus casos policiais e as suas relações familiares.

Aqui, no entanto, isso é levado a uma esfera mais rica e interessante. Para a construção de clímax e andamento narrativo, The Sinner aposta em uma mistura que envolve Nietzsche, masculinidade e privilégio branco.

Alerta de spoilers (ou não): os dois homens que se envolveram no acidente são amigos de faculdade. Eles mantêm uma relação estranha e problemática. Nick Hass (Chris Messina) exerce uma influência quase sobrenatural sobre Jamie Burns (Matt Bomer).

Na época de adolescência, Hass encontra em Burns o parceiro perfeito para partilhar seus ideais. Ambos são frutos de seios familiares tensionados e homens com relativa sensibilidade a dilemas filosóficos.

São essas similaridades que Hass, uma espécie de sociopata, usa para se unir a Burns através da filosofia de Nietzsche. O Übermensch (Além-homem), descrito no livro Assim Falou Zaratustra, se torna o modelo desejado por eles.

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Jamie Burns é um dos protagonistas/antagonistas da terceira temporada - Reprodução

A dupla passa a fazer atos “acima da moral” e da normalidade, pondo em risco a própria vida e, futuramente, a vida dos outros – tudo dependendo do resultado de um brinquedo de papel “abre-fecha”.

É aí que damos um salto para 18 anos depois. Burns agora tem ao seu lado a esposa grávida, o emprego de professor de História e uma vida normal estabelecida. Do outro lado, Haas também se tornou alguém bem sucedido e rico. Ambos, no entanto, infelizes.

Burns não esquece de todas as sementes que Haas plantou na sua cabeça, e a rotina de “pai de família” o incomoda constantemente. É a deixa para seu parceiro invadir, sem permissão, novamente sua vida. Até que “boom!”, o acidente acontece para Harry Ambrose entrar em cena.

A 3º temporada de The Sinner é feita de contrastes sutis. Temos dois personagens brancos (e isso é fundamental) com ideais filosóficos tortos, baseados em um mundo de inspiração literária.

A filosofia de Nietzsche e o “Além-homem” são lentes inadequadas para uma realidade exposta a mentes perturbadas – algo próximo ao que aconteceu com Hitler e toda base teórica do Nazismo.

Em um embalamento comercial, é claro que The Sinner não está interessado em explorar imageticamente afundo qualquer coisa que diz respeito aos pensamentos do filósofo (Quem quiser algo assim pode encontrar aqui mesmo no Brasil Dias de Nietzsche em Turim, de Julio Bressane). A série se move a partir de como a narrativa expõe esses abismos entre ideações e o que de fato irá acontecer.

Os personagens acreditam em um mundo problemático, robotizado e vil. Para transgredi-lo, as soluções são individualistas e sem nenhuma leitura de contextos raciais ou socioeconômicos.

O papel dos personagens secundários é também de alertar essas distinções: a mulher de Burns, negra, chega a usar a vivência do pai, agricultor jamaicano, para tentar um choque de realidade. Ela prontamente é respondida pelo marido: “Então eu, um cara branco, não posso me sentir dessa forma?”.

De fato, ele “pode”, até porque não há muito o que possa pará-lo. Afinal toda trama é sustentada em torno da incapacidade da lei de prendê-lo, por mais que ele siga a infringindo.

Contextualizando isso às tensões que atualmente explodem nos Estados Unidos, é fácil de entender a posição de privilégio que o personagem ocupa.

Harry Ambrose, o agente da lei, também tem um papel fundamental nisso tudo. Entre a ética, sua lógica pré-estabelecida e o ofício, ele vai sendo puxado por todo turbilhão de má filosofia, e Burns só está lá para confundi-lo ainda mais.

Enquanto isso, personagens morrem e a realidade – material acima de qualquer ideação filosófica – vai exercendo sua força avassaladora. No meio de tudo, Sonya Barzel (Jessica Hecht), uma pintora que termina acidentalmente envolvida na trama, faz a melhor inserção: “São apenas garotos quebrados que falharam em se encaixar nos ideais de masculinidade”.

Pode até parecer encheção de saco acompanhar oito episódios de dramas particulares de homens brancos com ideais filosóficos abobalhados e perigosos. Mas The Sinner guarda uma paixão tão grande por esses personagens que toda trama soa interessante, principalmente por se nutrir desses contrastes sutis com a realidade.

Talvez precisasse um pouco mais de coragem para assumir a autoconsciência que, de fato, os protagonistas são pessoas detestáveis e amaldiçoadas. Personagens capazes de ações controversas para a moral do público e da própria estrutura da obra, e não mais aquelas reviravoltas mirabolantes de lugares seguros e confortáveis.

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