CELEBRAÇÃO

Cabeça de Dinossauro: ícone do rock no Brasil

Há 35 anos, Titãs lançava o álbum Cabeça de Dinossauro e, além do sucesso de vendas, conquistava respeito com uma obra antológica

Marcelo Cavalcante
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Marcelo Cavalcante
Publicado em 25/07/2021 às 10:00 | Atualizado em 25/07/2021 às 11:04
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ANIVERSÁRIO No dia 15 de junho o terceiro álbum dos Titãs, Cabeça Dinossauro, completou 35 anos de um lançamento histórico - FOTO: DIVULGAÇÃO
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O ano era 1986. O Brasil estava começando um novo ciclo. Pela primeira vez, após longos e tenebrosos invernos, um civil estava à frente do governo federal. Um período difícil de transição. A ditadura se ia (será?) e a porta da democracia se abria. Inflação, recessão, desemprego, fome, planos econômicos malucos, congelamento de preço. Uma loucura. O rock nacional, que já havia explodido nas rádios e TVs e ditado os costumes dos adolescentes há alguns anos antes, já vivia o marasmo.

Era como se o encanto dos riffs de guitarras estivesse cansado. Mas eis que a banda paulistana Titãs sacode tudo com uma obra visceral e antológica. Há 35 anos, Cabeça Dinossauro caía no mercado fonográfico como uma bomba atômica, causando ruído entre as pessoas. Como oito marmanjos que vinham de sucessos radiofônicos, como Sonífera Ilha, Toda cor e Insensível, mergulhados em baladas, iê-iê-iê e new wave, poderiam criar um álbum pesado, corrosivo, sagaz, ácido, atingindo instituições sagradas como igreja e a família? Paulo Miklos, Nando Reis, Sérgio Britto, Marcelo Fromer, Toni Belotto, Charles Gavin, Arnaldo Antunes e Branco Mello escancararam o mercado, a arte, e despejaram uma obra que saia da mesmice e entrava para a história. Foi olhando para seu próprio universo que os Titãs romperam com o que estava pré-estabelecido e fizeram de Cabeça Dinossauro uma obra atemporal e obrigatória para quem gosta de rock.

Cabeça Dinossauro pode ser definido simplesmente como um clássico. Um álbum necessário. Mas para entender como esse trabalho ganhou tal status, é preciso voltar ainda mais no tempo. Boa parte dos integrantes dos Titãs estudava no colégio Equipe, de São Paulo. O amor pela música, pela arte de uma forma geral, fortaleceu o elo de amizade. Todos alimentavam o sonho de produzir músicas capazes de levar a banda para os programas de auditório da TV. Havia um hit potencial: a já citada Sonífera Ilha, escrita por Ciro Pessoa, um dos líderes da banda, que pulou fora do barco assim que os Titãs assinaram contrato com a gravadora Warner para a produção de três álbuns (Ciro faleceu em maio do ano passado, vítima da covid-19, enquanto fazia tratamento contra um câncer).

A canção estourou nas rádios e os Titãs estavam em todos os programas de auditório, como eles tanto sonharam. Mas o álbum de estreia, apesar do sucesso, não vendeu como se esperava. E assim, para o segundo disco, mudanças foram feitas. A banda trocou de baterista. Charles Gavin, que estava no Ira!, topou a parada e entrou no lugar do demitido André Jung, que foi para o Ira!. Para a produção, Lulu Santos, que naquelas alturas, havia estourado com o hit zen e otimista Como uma onda. Os Titãs emplacaram mais sucessos: a faixa título Televisão, Insensível, Tudo vai passar, Autonomia e Massacre, esta última cantada em italiano e que, curiosamente, se transformaria na senha do que estava por vir.

A repercussão nas rádios poderia agradar os integrantes, mas os donos da gravadora não ficaram satisfeitos. Queriam cofres cheios. O próximo passo era definitivo. Ou vendiam bem ou estavam fora. O octeto se viu numa ansiedade tremenda, natural de quem lança um sucesso na estreia e tem o desafio de manter a qualidade no segundo álbum. Os Titãs eram um caso raro. A pressão estava no terceiro.

"Uma das coisas que afligia a gente é que percebíamos que a banda tinha uma energia grande no palco, mas que não conseguíamos transferir para o disco. Então, a gente buscou esse caminho", contou o baixista Nando Reis em seu canal do Youtube.

Decidiram, então, convidar Liminha para a produção. O ex-baixista dos Mutantes era mais conhecido por produzir artistas pops e da MPB, como Lulu Santos e Gilberto Gil, o que, a princípio, poderia soar estranho para o som que o octeto paulista estava pretendendo para aquele momento.

"Cabeça acabou se tornando uma radiografia interessante daquilo que a banda vivia naquele momento. Tivemos confluências de ideias estéticas e artísticas que se encaixaram perfeitamente. A sonoridade de cada faixa tinha total consonância com o que estava se cantando nela", disse o baterista Charles Gavin, em entrevista ao canal do Youtube do músico Gilson Naspolini.

A banda entrou no lendário estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, empunhando uma demo em que já tinham todas as canções praticamente prontas. Liminha, Pena Schmidt e Vitor Farias, que assinaram a produção e a mixagem do álbum, trataram de turbiná-las. Apenas uma sobrou: Vai para rua, que deu lugar à Porrada, que tem um refrão poderoso e grudento: 'Porrada nos caras que não fazem nada'. Já a canção O quê? foi praticamente toda refeita, ganhando a psicodelia que a letra pedia.

Mais entrosados como banda, os Titãs, embora sentissem o peso da responsabilidade de ter que colocar no mercado um álbum com sucesso financeiro para a gravadora, só pensavam em despejar nos amplificadores aquela sonoridade que queriam tocar. Cabeça Dinossauro chegou às prateleiras da loja chamando a atenção logo pela capa: imagem de um homem das cavernas, de Leonardo da Vinci. Ideia do tecladista e vocalista Sérgio Britto. Era tudo muito estranho para quem estava acostumado ao pop dos discos anteriores. Mas os Titãs foram no alvo.

Cabeça Dinossauro vendeu 250 mil cópias na época. Atualmente, já atingiu a marca dos 700 mil. Claro que os executivos da Warner riram à toa. No entanto, quem mais ganhou foi o público diante de uma obra histórica. E também os Titãs, que se firmaram de vez no rock. "Foi o divisor de águas da nossa carreira. Conseguimos uma coisa que é difícil, que é a assinatura artística, sonora. Você escuta o disco e já sabe quem é o guitarrista, o vocalista, o baterista... esse disco tem uma assinatura titânica, tanto de som quanto de discurso", afirma Gavin.

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dinossauri - FOTO:artes jc
ARNALDO CARVALHO/JC IMAGEM
Foi a porrada que o Brock precisava. As gracinhas ficaram de fora das letras que não têm nada de deprê, e muito de transgressão", diz o crítico de música José Teles - FOTO:ARNALDO CARVALHO/JC IMAGEM
ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM
O Cabeça chegava sem massagem, chegava como um soco no estômago, chegava cheio de atitude como o verdadeiro rock", aponta o cantor Canibal - FOTO:ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM
CORTESIA
Duvido que qualquer pessoa que era jovem nos anos 80 não saiba decorado músicas como Homem Primata, Bichos Escrotos e Polícia", opina o fã Carlos Renato - FOTO:CORTESIA

Um álbum que vai além do clássico

O que pode transformar um álbum num verdadeiro clássico? Há muitas respostas para essa questão. Há em quem diga que só tempo responde. Mas ele só poderá dar essa resposta diante de uma obra consistente, verdadeira, corrosiva, elétrica, atemporal, intensa. Cabeça Dinossauro é tudo isso. E me atrevo a dizer que vai além. Foi uma obra que marcou a vida das pessoas porque elas se identificaram com todo o seu conteúdo.

Não eram canções apenas para balançar o esqueleto, chacoalhar a cabeça e posar de roqueiro. Havia veneno dos bons para mexer com o 'establishment', sair da rotina letárgica que nos fazia engolir a realidade de um País que ainda estava doente pela ditadura. Era preciso dar "Porrada nos caras que não fazem nada". E os Titãs deram. Um porrada que ecoa os nossos ouvidos 35 anos depois.

O rock nacional viveu sua época de ouro nos anos 80. O boom foi gigante. As gravadoras estavam ávidas pelas novidades e pelos sucessos. Mas quando o mar já estava calmo, os Titãs lançaram no mercado um meteoro que não foi passageiro. Eclodiu na mente das pessoas um sentimento que estava quieto no subconsciente. Foi, sim, um divisor de águas na carreira da banda. Mas também foi na música brasileira.

Os Titãs não tiveram o menor pudor em mexer em instituições sagradas da sociedade. "Polícia para quem precisa, polícia para quem precisa de polícia", berrava Sérgio Brito em Polícia. "Eu não gosto de padre, eu não gosto de madre, eu não gosto de frei. Eu não gosto de Bispo, eu não gosto de Cristo, eu não digo amém", disparava Nando Reis em Igreja. Em meio a tantas canções pasteurizadas nas rádios, esses versos foram corrosivos.

Assim como Estado Violência, que não tinha dó do sistema penitenciário e governamental; Família, fazendo uma sátira à relação das pessoas nas suas casas, e Dívidas, contando a saga de um cidadão comum destruído pela realidade de um Brasil falido. Cabeça Dinossauro foi o retrato fiel de uma realidade difícil que vivíamos e não enxergávamos. Fazia total sentido o disco encerrar com a faixa hipnótica O quê?, de Arnaldo Antunes. Afinal, "O que não pode ser que não é?".

Palmas para os titânicos Charles Gavin, Paulo Milkos, Sérgio Britto, Nando Reis, Marcelo Fromer, Toni Belotto, Arnaldo Antunes e Branco Mello que já chamavam a atenção pela formação da banda. Um octeto fazendo sucesso era (e ainda é) algo raro. E não se tratava do caso de uma banda em que dois estavam à frente e os outros seguiam o rumo. Eram todos cabeças pensantes que amavam o ofício, respeitavam os seus espaços, que sabiam o que queriam, que depositaram toda energia num trabalho que elevaram os Titãs ao pelotão de cima da música brasileira.

Cabeça Dinossauro foi a síntese dessa postura. Pois eles foram verdadeiros, eles mesmos. Sem firulas e nem fingimentos. Sinto falta de uma obra assim no rock nacional: eterna, pulsante e que nos faça cantarolar versos tão duros quanto reais: "Porque aqui na face da Terra só bichos escrotos é o que vai ter". Visionários! (M.C.)

Marcelo Cavalcante, jornalista do SJCC apaixonado por rock in roll

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